As ideias de Karl Popper têm sido (em geral) adulteradas e manipuladas, não só (malevolamente) pela Esquerda declaradamente marxista, mas também idiota- e principalmente pelos chamados “liberais”.
Por exemplo: quando Karl Popper defendeu positivamente a convivência entre culturas diferenciadas — por exemplo, a convivência entre as diferentes culturas que se cruzaram no império austro-húngaro — que se reflectiam na cultura vivaz da cidade de Viena do princípio do século XX, Karl Popper não quis defender o multiculturalismo (como é, assim, alegado pelos ditos “liberais”); e isto porque a convivência entre culturas diferentes do império austro-húngaro foi sinónimo de uma claríssima superioridade social da cultura e língua de origem alemã — de tal forma que, ainda hoje, a língua alemã é correntemente falada na Hungria.
Ou seja:
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no império austro-húngaro, “todas as culturas eram iguais”, embora uma delas (a cultura austríaca de origem alemã) fosse “menos igual do que todas as outras”; a predominância cultural, social e civilizacional da cultura de língua alemã era por demais evidente no império austro-húngaro;
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o multiculturalismo é o igualitarismo cultural, ou seja, a defesa do acantonamento e do isolacionismo das diversas culturas presentes em um determinado espaço político. O multiculturalismo é a antítese do fenómeno social de convivência intercultural que se verificou no império austro-húngaro.
O que se verificou no império austro-húngaro foi um interculturalismo, e não um multiculturalismo.
No interculturalismo, está sempre subjacente uma hierarquia de valores que se reflecte na predominância (comummente aceite pelos intervenientes de todas as culturas em presença) de uma certa cultura em relação às outras, com as quais convive livremente.
No multiculturalismo, as diversas culturas em presença em um mesmo espaço político, acantonam-se e isolam-se, em nome de uma putativa “igualdade” entre elas. Ora, isto (o multiculturalismo) é exactamente o oposto do que defendeu Karl Popper.
O conceito de “etnocentrismo” — de que nos fala aqui a professora Helena Serrão, citando um relativista ideológico de seu nome Augusto Mesquitela Lima — aplica-se perfeitamente a uma sociedade multiculturalista, embora no sentido negativo (porque existe um etnocentrismo positivo, que é o que promove activamente a coesão do Todo social em uma sociedade étnica- e culturalmente homogénea).
Em uma sociedade dita “multiculturalista” (que não é a mesma coisa que “sociedade multicultural” ou “interculturalista”), existe um etnocentrismo negativo acantonado em cada uma das culturas antropológicas existentes e igualitariamente consideradas em um mesmo espaço político (por exemplo naquilo a que o presidente francês Emmanuel Macron, mas também e agora a Marine Le Pen, chamam de “separatismo islâmico” em França) .
Em suma, existe uma contradição fundamental no texto do tal Augusto Mesquitela Lima citado pela professora Helena Serrão, que consiste em afirmar, por um lado, uma crítica ao etnocentrismo, e, por outro lado, a defesa do relativismo igualitarista inerente ao multiculturalismo — porque uma das características do multiculturalismo é precisamente o exacerbar do etnocentrismo enquanto recusa de incorporação de uma das culturas no Todo social e político.
Numa sociedade interculturalista (por exemplo, a do império austro-húngaro), não existe o relativismo cultural defendido pelo Mesquitela, na medida em que existe uma hierarquia nas culturas em presença. E o multiculturalismo é a recusa dessa hierarquia entre culturas.
A posição ideológica do Mesquitela reflecte a ideia grega dos sofistas, segundo a qual “o homem é a medida de todas as coisas”; mas, ainda assim, o Mesquitela entra em contradição fatal (passo a citar um trecho do referido texto):
“A posição relativista (cultural) não significa, de forma alguma, que todos os sistemas de valores, todos os conceitos de bem e de mal, assentem sobre areias tão movediças que não haja necessidade de uma moral, de formas de comportamento estabelecidas e aceites, de códigos éticos.
Aliás, o relativismo cultural é uma filosofia que aceita os valores estabelecidos em qualquer sociedade, acentuando a dignidade inerente a qualquer desses sistemas de valores e a necessidade de tolerância em relação a eles, embora possam diferir dos que adoptamos e pelos quais nos conduzimos. Reconhece ainda a necessidade de conformidade com normas estabelecidas, como condição necessária para a normalidade da vida em sociedade.”
Segundo o Mesquitela, por um lado existe a necessidade da existência de uma ética (que, por definição, tem que ser universal e é imposta a toda a sociedade por uma determinada cultura antropológica); mas, por outro lado, o Mesquitela defende que todas as culturas presentes na sociedade (por mais dispares que sejam, entre si) produzem éticas equivalentes e igualmente dignas de respeito. Isto é digno de um idiota.