perspectivas

Segunda-feira, 29 Abril 2019

O axioma da “razão suficiente”

Filed under: Europa — O. Braga @ 10:24 pm
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“Nenhum facto pode ser verdadeiro ou real, ou nenhum juízo pode ser correcto, sem uma razão suficiente.”

Leibniz  

É praticamente unânime a consideração segundo a qual Leibniz e Newton foram dos europeus com mais elevado QI da História.

O princípio da “razão suficiente” [de Leibniz] é simplesmente genial, desde logo porque não se poderia deduzi-lo da experiência: este axioma foi e será sempre válido. A verdade deste axioma é intemporal: a sua verdade existe numa dimensão intemporal da consciência, na qual a Razão participa.

Ou seja, é pressuposta a validade daquilo que só deve ser comprovado pela dedução — independentemente do modo como os axiomas lógicos [que não são físicos!] surgiram ao longo da evolução humana, a validade desses axiomas transcende a realidade humana.


A ler:


“Mesmo que os axiomas de uma [qualquer] teoria [cientificamente válida] sejam formulados pelo ser humano, o sucesso de um tal empreendimento pressupõe uma elevada ordem do mundo objectivo, que não se podia esperar de maneira alguma. ”

→ Albert Einstein, “Worte in Zeit Und Raum”, 1992, pág. 92, Bonn.

Quarta-feira, 27 Fevereiro 2019

Bertrand Russell “já era”

Filed under: filosofia — O. Braga @ 8:29 pm
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A professora Helena Serrão transcreve aqui um textículo de um livro de Bertrand Russell. Devo dizer que tenho a primeira edição desse livro publicada em Portugal na década de 1960. Já o estudei 1 de trás para frente depois de frente para trás. E o seu conteúdo (da filosofia de Bertrand Russell) está, em grande parte, ultrapassado, isto é, não é válido (por exemplo) no que diz respeito à alegada contraposição (ou oposição) da ciência em relação à metafísica ou à religião em geral.

Para fazermos uma crítica a Bertrand Russell, reduzindo as suas teses ao absurdo, devemos ler três autores: 1/ Karl Popper, na área da ciência; 2/ Louis Lavelle, na metafísica e na ética; e 3/ Eric Voegelin, nas ciências da História.

Naturalmente que nunca veremos a professora Helena Serrão citar quaisquer destes três autores; aliás, só lhe falta começar a citar Karl Marx, Engels e Feuerbach, por exemplo.


O que mais me choca em Bertrand Russell é a ética (dele). Em resumo e simplificando, ele diz o seguinte (hiperbolizando): se uma maioria de pessoas, em uma determinada sociedade, for de opinião (por exemplo) de que o infanticídio é moralmente aceitável, então essa ética é aceitável porque é apoiada pela maioria das pessoas (é o mesmo princípio da ética do “modelo discursivo” do marxismo cultural de J. Habermas e de K. O. Apel).

A ética de Bertrand Russell é humeana (David Hume), e por isso mesmo subjectivista e auto-contraditória — porque, a julgar pelos seus próprios parâmetros, ele objectivamente torna legítima a ética do regime nazi (por exemplo), ao mesmo tempo que subjectivamente critica o nazismo. Como em toda a ética de raiz humeana (como é o caso, por exemplo, do utilitarismo), há na ética de Bertrand Russell uma contradição insanável e irreconciliável entre o subjectivo e o objectivo.


Vamos analisar apenas uma proposição do referido texto; por exemplo:

¿Estará o mundo dividido entre espírito e matéria, e sendo assim, que é espírito e que é matéria?


bertrand-russell-300-webActualmente, só um burro coloca o problema da Realidade desta forma, depois das descobertas da física quântica. Aliás, a física quântica incomoda os “filósofos de academia”, aqueles que têm como função principal justificar o espírito empedernido de técnicos que se auto-intitulam “cientistas”. 2

Não quero eu com isto dizer que não exista eventualmente diferença entre espírito e matéria (“espírito” aqui entendido no sentido de “consciência”): o que eu quero dizer é que não existe nenhum ser humano, cientista ou não, que me dê uma definição de “matéria”. Se houver por aí um génio que me defina “matéria”, agradeço antecipada- e encarecidamente. Ora, Bertrand Russell fala de conceitos que não têm uma definição precisa, e por isso entra pela metafísica que ele próprio critica.

Porém, se partirmos do princípio segundo o qual “tudo o que tem massa é matéria”, então a "função de onda quântica" (princípio da sobreposição) 3 revela-nos de que existem aspectos da Realidade que não têm massa, e portanto não podem ser considerados como sendo “matéria”.

“A distinção entre matéria e espaço vazio teve que ser finalmente abandonada, quando se tornou evidente que as partículas virtuais [partículas elementares] podem ser criadas espontaneamente, a partir do vazio, e nele desaparecem novamente, sem que esteja presente algum nucleão ou qualquer outra partícula que interactue fortemente.

As partículas [partículas elementares] formam-se a partir do nada e desaparecem novamente no vácuo. De acordo com a “teoria de campo”, acontecimentos deste tipo estão constantemente a acontecer. O vácuo está longe de se encontrar vazio. Pelo contrário, contém um ilimitado número de partículas que surgem infinitamente.”

Fritjof Capra, “O Tau da Física”, página 184

Este trecho de Fritjof Capra destrói qualquer construção ideológica clássica de Bertrand Russell em torno do conceito de “matéria” — porque se as partículas elementares surgem e desaparecem “espontaneamente” no universo, ficamos sem saber o que significa “matéria”.


Notas

1. Estudar não é apenas ler: é analisar cada palavra do ponto de vista morfológico e sintáctico, e depois fazer uma síntese tão simplificada quanto seja possível e sem gongorismos.  
2. O chamado “cientista trabalhador” (em contraponto ao “cientista pensador”), que dispõe de fórmulas comprovadas que estão resumidas em uma espécie de “livro de receitas”: até mesmo um físico medíocre pode fazer um bom trabalho no laboratório, embora não tenham consciência das consequências da física quântica actual para a questão da Realidade.
3. Em Física, chamam de “complementaridade” a um método duplo que consiste em determinar o comportamento de uma partícula elementar, que pode comportar-se como uma onda (sem massa) ou como matéria; aos dois métodos complementares para determinar o comportamento de uma partícula elementar, chamou-se de “complementaridade”.

Segunda-feira, 27 Fevereiro 2017

Síntese crítica da teoria subjectivista niilista de Peter Singer (parte 1)

Filed under: A vida custa,Esta gente vota — O. Braga @ 2:06 pm
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Um dos problemas do consequencialismo (em ética), é a certeza do futuro. O consequencialista puro tem a certeza do futuro.

Por exemplo: se eu vejo um automóvel a uma velocidade de 150 quilómetros / hora dentro da cidade, posso afirmar o seguinte:

“É provável que aquele automóvel tenha um acidente dentro da cidade”.

Se o automóvel vai a 80 quilómetros / hora, posso dizer:

“É verosímil que aquele automóvel tenha um acidente dentro da cidade”.

Se o automóvel vai a 40 quilómetros / hora, posso afirmar:

“É possível que aquele automóvel tenha um acidente dentro da cidade”.

Mas em nenhum caso posso ter a certeza, porque ninguém conhece o futuro. Mas o consequencialista conhece o futuro: senão vejamos o que diz o Peter Singer:

“On absolute moral standards: There are still absolutists. Some are proponents of the “new natural law” tradition, which has its roots in Catholic moral theology, even though it is presented as a secular position. Others are Kantians, many of them outside English-speaking philosophy. In Germany, for example, you would find wide support for the idea that we should not torture a child, even if (as in Dostoevsky’s example in The Brothers Karamazov) that would produce peace on earth forever. To me it seems obvious that if by torturing one child you could prevent a vast number of children (and adults) suffering as much or more than the child you have to torture, it would be wrong not to torture that child.”

Peter Singer diz que torturar uma criança não é mau, se a tortura dessa criança evitar que um vasto número de crianças e adultos venham a sofrer também (o nazi Josef Mengele pensava da mesma forma, quando fazia experiências médicas com crianças judias).

Há aqui uma certeza, da parte de Peter Singer: a de que a consequência do sofrimento (causado propositadamente) dessa criança aliviará, no futuro, o sofrimento de muitas outras crianças e de adultos. E por isso, diz Peter Singer, a tortura dessa criança até é coisa muito boa de se fazer; porque ele tem a certeza do futuro, tal como Mengele tinha.

Mas se a tortura for aplicada em um porco ou num cão, Peter Singer já não concorda com o seu próprio consequencialismo, porque ele considera que um porco ou um cão é um animal superior a uma criança. Mas deixemos esta incongruência para um outro verbete.

Não sei se Peter Singer tem filhos, mas se torturassem um filho dele para “bem da humanidade”, talvez ele não ficasse feliz. Talvez ele não tenha filhos para poder defender a tese da “tortura racional de uma criança”. (Por outro lado, Peter Singer é contra a tortura de terroristas islâmicos no GITMO; porque um terrorista islâmico é um adulto, e não uma criança: para Peter Singer, uma criança tem um valor ontológico inferior a um adulto).

O problema do consequencialismo puro é que não distingue o racionalmente impossível, o possível, o verosímil, o provável, e a certeza.

Para o consequencialista puro, o futuro é sempre uma certeza subjectiva, ou intersubjectiva de uma elite. E como o futuro é sempre uma certeza da elite, a sua moral é teleológica: os fins justificam quaisquer meios, porque se tem a certeza de que os fins se realizarão exactamente conforme o pressuposto.

No consequencialista puro coexiste um romântico e um positivista (porque o positivismo é o romantismo da ciência).

Mas mesmo que tivéssemos a certeza do futuro, segundo o qual a tortura de uma criança beneficiaria muitas outras crianças e adultos, essa tortura seria barbárie, do ponto de vista ético — porque nem todos os fins justificam quaisquer meios; há limites.

E aqui o limite é o do ADN da criança que é um ADN humano, único e irrepetível.

O que nos separa irredutivelmente de Peter Singer é o valor do ser humano: para ele, o ser humano tem um determinado valor, dependendo se é uma criança, um adulto ou um velho. Porém, o problema de Peter Singer é que não existe um consenso universal e geral sobre quanto vale um ser humano; e portanto, o valor que ele dá ao ser humano é um valor subjectivo que, ipso facto, não pode ser universal e, por isso, não se pode transformar em uma teoria ética propriamente dita.

Sábado, 25 Fevereiro 2017

Mal-entendidos da filosofia moderna

 

Temos aqui um verbete de um tal Marcos L. Mucheroni (parece-me professor de filosofia no Brasil) que me mencionou aqui. Vou tentar, desta feita, analisar o verbete em causa que aborda a questão da mundividência, ou da ausência dela na nossa sociedade.

1/ Vamos começar com Einstein:

“Mesmo que os axiomas da teoria (não interessa qual, neste caso) sejam formulados pelo ser humano, o sucesso de um tal empreendimento pressupõe uma elevada Ordem do mundo objectivo — o que não se podia esperar de maneira alguma.” [“Worte in Zeit und Raum”]

É óbvio que Einstein tem razão. Existe uma Ordem do mundo objectivo. Essa Ordem é (não só, mas também) imanente ao mundo, ou seja, é uma Ordem que a nossa inteligência pode facilmente detectar através da ciência ou das teorias científicas. Qualquer cientista honesto detecta e reconhece publicamente essa Ordem imanente. Sublinho: honesto.

Mas, por outro lado, vejamos o que escreveu o físico alemão Hans Rohrbach (1967):

“A matemática não é um produto da razão humana, mas, por assim dizer, é mais inteligente do que a razão humana”.

Ou seja a lógica matemática está para além da razão humana, aponta para o infinito que, neste caso, não é o infinito imanente dos gregos (socráticos e pré-socráticos incluídos), mas é um infinito transcendente ao espaço-tempo e ao universo.

Este infinito transcendente é a novidade do Cristianismo (com a contribuição de Plotino e Proclo).

Portanto, o Marcos pode ter alguma razão quando diz que as filosofias de Platão ou de Aristóteles eram imanentes; mas já não tem razão quando pretende dizer que a filosofia dos pré-socráticos (de acordo com Heidegger) não eram imanentes.


Em Aristóteles, o conceito de “alma” não era transcendente, e portanto qualquer analogia com a “alma” cristã, é falácia.

Para Aristóteles, a alma era o “Nous” ou “Intelecto”. Tanto Platão como Aristóteles moviam-se mais ou menos na imanência herdada das divindades intra-cósmicas do panteão grego, e não admitiam sequer a criação do mundo a partir do “Nada”.

Para Aristóteles e Platão, o esboço ideológico de um Deus não era a de um Deus Criador, mas o de um demiurgo ou arquitecto que moldou a matéria original ou Ápeiron. A noção de Ápeiron vem dos pré-socráticos (nomeadamente, Empédocles).

Como escreveu Ortega y Gasset, o mundo das Ideias de Platão ou o Nous de Aristóteles pertencem a um “quási-lugar extra-mundano, a região sobre-celeste”(¿Que es Filosofia ?, página 30, segunda edição, 1960). O lugar das Ideias de Platão e do Nous de Aristóteles não é extra-mundano (transcendente): é quase extra-mundano, ou seja, imanente.

Quando Aristóteles fala da “superioridade da alma relativamente ao corpo”, não fala da superioridade da “alma cristã” em relação ao corpo, mas antes na superioridade do Nous (intelecto) de uns em relação a outros.

A diferenciação conceptual e cultural da “alma cristã” transcendente, em relação à “alma grega” imanente (seja socrática, seja pré-socrática), aconteceu mais tarde, com a influência judaica e com o neoplatonismo (Plotino, Proclo), já na era depois de Cristo.


2/ O Marcos escreveu:

“(…) o teocentrismo tem como catarse no final da idade média exactamente o problema do movimento dos planetas e da centralidade do sol, (…)”

O Marcos incorre no mesmo erro ideológico da pseudo-ciência actual — a ideia segundo a qual o geocentrismo e o teocentrismo estão estrita- e directamente ligados, e que Galileu fez a “catarse do teocentrismo cristão” através da defesa do heliocentrismo.

Em primeiro lugar, Copérnico (um clérigo católico) defendeu o heliocentrismo antes de Galileu.

E muito antes de Copérnico, Aristarco de Samos, que viveu no século III a.C., foi simbolicamente condenado à morte — ou seja, não foi realmente morto — por ter dito que era a Terra que se movia em torno do Sol e que as estrelas não rodopiavam à volta da Terra; e foi virtualmente condenado à morte precisamente porque Aristarco colocava assim em causa a existência da morada dos deuses gregos, porque segundo a mitologia grega era suposto que a Terra fosse o centro do universo, explicando-se assim a existência do Olimpo.

Em segundo lugar, se entendermos a ciência na perspectiva actual e actualizada — que não deve incluir o cientismo —, a reacção do Papa às teses de Galileu foi absolutamente correcta, do ponto de vista científico.

As teses de Copérnico receberam o imprimatur do Vaticano porque foram formuladas como hipóteses   — o que não aconteceu com Galileu, que não quis formular hipóteses, mas antes pretendeu afirmar verdades absolutas. E a tentativa de afirmação das suas verdades absolutas aconteceu numa época em que a hipótese de Ptolomeu podia explicar melhor muitos fenómenos celestes.

Segundo a perspectiva actual não-cientificista e, por isso, racional e científica propriamente dita, a Igreja Católica do tempo de Galileu defendeu a concepção científica mais moderna (a ciência do paradigma), embora tenha errado tanto quanto erra a ciência actual.

Sábado, 19 Novembro 2016

Ensinando o Pai-Nosso ao Padre jesuíta Gonçalo Portocarrero de Almada

 

“I protest against the power of mad minorities to treat the majority as if it were another minority. But still more do I protest against the conduct of the majority if it surrenders its representative right so easily”. → G. K. Chesterton


“Ai do mundo por causa dos escândalos! Eles são inevitáveis, mas ai do homem que os causa!” [Mateus, 18, 1-8]


Depois destas duas citações, vou citar o Padre Gonçalo Portocarrero de Almada:

“O que é, ou não, natural tem muito que se lhe diga. Sem entrar no fundo da questão, pode-se dizer que é natural o que se observa na generalidade das pessoas e que, por isso, se atribui à natureza humana. Ora, no mundo inteiro, cerca de 97% da humanidade sente-se atraída pelo sexo oposto: pode-se dizer portanto que, em termos sociológicos, essa é a tendência mais natural, sem que o seu contrário seja anormal. Neste sentido, o celibato, que contraria uma inclinação generalizada, não é tão natural quanto o casamento, sem que por isso seja nenhuma anormalidade. Ser superdotado também não é natural, embora seja, como é óbvio, excelente”.

Ou seja, para o Padre, “há tendências mais naturais do que outras”. Naturalmente que se ele comparar o ser humano com o peixe-palhaço, chegará à conclusão de que a ideologia de género é natural.

Por outro lado, o Padre compara a “não-naturalidade” do celibato — que é um esforço que contraria o desejo de um fim próximo, em função do desejo de um fim último: ou seja, o celibato é uma virtude —, por um lado, com a “não-naturalidade da homossexualidade”, por outro lado — como se a homossexualidade fosse também uma “virtude não-natural”.


Mais adiante, o Padre escreve:

“A propósito, esclareça-se que a Igreja não reprova a tendência homossexual, nem muito menos as pessoas – algumas, por certo, católicas – que, por vezes contra a sua vontade e com grande sofrimento, se reconhecem nessa situação. O que a Igreja reprova são os comportamentos contrários ao que, segundo a Bíblia, entende ser o recto uso da sexualidade humana, sejam esses actos praticados por um homem ou uma mulher, uma pessoa solteira ou casada, com tendência homossexual ou heterossexual”.

Isto seria o mesmo que o Padre dissesse: a igreja não reprova a tendência psicopata do assassino em potência: o que a Igreja Católica reprova é o acto do homicídio”. Obviamente é falso. O Padre cai na casuística que os jesuítas inventaram e que o papa Chico utiliza de forma adestrada na destruição da doutrina católica.

A verdade, o que o Padre jesuíta Gonçalo Portocarrero de Almada escamoteia, é a seguinte: a Igreja Católica condena, em graus e termos diferentes e como é lógico, a tendência homossexual e o acto homossexual.

É falso dizer que “a Igreja não reprova a tendência homossexual”, porque isso seria afirmar que a Igreja Católica aprova o conatus gay, o que teria como consequência a impossibilidade lógica de condenar o próprio acto homossexual.

Terça-feira, 8 Novembro 2016

O Cristiano Ronaldo, o Rolando Almeida, e Nozick

Filed under: A vida custa — O. Braga @ 12:20 pm
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O Rolando Almeida escreve aqui:

“Cristiano Ronaldo assinou novo contrato com o Real Madrid, o seu clube. Passa a ganhar cerca de 20 milhões de euros de salário por ano. Será moralmente justo? Deve o Estado intervir e cobrar mais impostos ao vencimento do Ronaldo para equilibrar a redistribuição da riqueza? Se o Ronaldo não é totalmente responsável pelo seu talento (pode ser hereditário) será justo ganhar mais que todos os outros que não podem competir pela lotaria da natureza em igualdade de circunstâncias? Vale a pena aproveitar a ocasião e perder 30 minutos a ver esta aula de Harvard com o professor e filósofo Michael Sandel”.

E depois segue o vídeo.


Ora bem. Michael Sandel é um comunitarista (não confundir com “comunista”), tal como, por exemplo, MacIntyre. Portanto, Sandel tem uma posição publicada contra Nozick e contra o libertarianismo. Mas, por outro lado, Sandel (como todos os comunitaristas, por exemplo, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, e até Michael Michael Walzer) também é crítico do utilitarismo nas suas diversas manifestações, incluindo John Rawls. O vídeo não apresenta a opinião de Sandel.

O libertarianismo parte do princípio do “I Own Myself” (“eu sou proprietário de mim próprio”); o princípio está errado, e por isso a teoria consequente está errada.

Eu só seria proprietário de mim próprio se eu fosse o criador (existencial) de mim mesmo; e mesmo que eu fosse o criador de mim próprio, a criação é limitação (o criador limita aquilo que é criado); porque a criação é transformar qualquer coisa em alguma coisa.

Mas o facto de eu não ser o proprietário de mim próprio não significa que eu seja propriedade de outro ser humano ou do Estado. Nem significa que o Estado possa alegar a “defesa da minha liberdade” tornando-me propriedade dele.

A única forma de ultrapassar este problema é pensar como Montesquieu: “Se Deus não existisse, teria que ser inventado” — porque a partir do momento em que Deus não exista, o Estado passa a ser o deus que é nosso proprietário (Rolando Almeida); ou então, na ausência de Deus, passamos conceber-nos a nós próprios como “proprietários de nós mesmos”, como pensam os libertários e Nozick.

A partir do momento em que o conceito de “propriedade” passa ter um cariz metafísico, torna-se mais fácil estabelecer o equilíbrio de interesses entre aquilo que é direito de propriedade do Cristiano Ronaldo, por um lado, e aquilo que é o direito de propriedade do Estado e da sociedade em geral, por outro lado.

Sábado, 5 Novembro 2016

O determinismo soteriológico do Calvinismo e da gnose da Antiguidade Tardia

 

Acerca deste verbete, um leitor colocou a seguinte pergunta:

¿Você poderia explicar melhor por que a predestinação calvinista tem orientação gnóstica?


Os leitores deste blogue, em geral, terão já notado que o blogue não sofre actualizações diárias, como acontecia ainda há pouco tempo. E uma das razões deste semi-abandono do blogue é a dificuldade em fazer subir o nível de complexidade dos assuntos tratados: chegamos a um ponto em que nos tornamos incompreensíveis ou ininteligíveis.


Para responder a esta pergunta, eu teria que dizer o que é a “predestinação calvinista”; e depois dizer o que é a “gnose”. E depois, estabelecer paralelos ideológicos entre uma coisa e outra. ¿Estão a ver a trabalheira?

Podemos resumir a coisa assim: na gnose da Antiguidade Tardia, a salvação do indivíduo também estava pré-determinada por Deus:

“Os gnósticos da Antiguidade Tardia formaram seitas iniciáticas assentes na distinção radical entre os chamados Hílicos (a escória da humanidade, ou profanos, ou não-convertidos), por um lado, e por outro lado os chamados Pneumáticos (os possuidores do Espírito Santo). Apenas para os Pneumáticos havia a possibilidade hic et nunc de salvação, ao passo que os Hílicos estavam, à partida, destinados à morte espiritual (determinismo da salvação)”.

Sábado, 8 Outubro 2016

O Henrique Raposo e o amor de pai

 

Eu já não compro novos livros publicados em Portugal; porque são escritos segundo o aborto ortográfico e eu não sou masoquista, e porque, em geral, a qualidade do que se escreve hoje é baixa. A julgar pela amostra do novo livro “Nós, os Pais”, escrita pelo Henrique Raposo:

“(…) não percebo aquelas pessoas que dizem que sentem logo empatia com os filhos acabados de nascer; não entendo a conversa sobre o encaixe perfeito logo no primeiro segundo, do amor imediato por aquelas criaturinhas, do choro comovido no parto (…)

¿O que move um ser humano — que não é religioso!; e que não espera nenhuma vida eterna —, por exemplo, a irromper em uma casa em chamas, a fim de salvar uma criança desconhecida que chora?


Em 1982 correu pelo mundo uma história que incomoda não só qualquer sociobiólogo, como um qualquer colaborador do blogue Rerum Natura.

air-floridaArland Williams, um homem na casa dos 40, revisor de um Banco em Washington, ia a caminho de casa em um fim de tarde; e no momento em que chegou à ponte que atravessa o rio Potomac na rua 14, ele ouviu, de repente, o barulho ensurdecedor de um grande avião que passou por cima da ponte e caiu no rio gelado, projectando destroços e corpos humanos.

Das 84 pessoas a bordo do voo da Air Florida, 79 morreram imediatamente. Mas a tripulação de um helicóptero de salvamento, que chegou pouco tempo depois, viu três mulheres e dois homens agarrados a um destroço de flutuava na água, e, muito perto deles, um outro homem que procurava manter-se à tona da água : este agarrou a corda que o helicóptero fez descer e deu-a à mulher que estava a seu lado. Quando o helicóptero regressou, voltou a dar a corda a outro homem; esta cena repetiu-se tantas vezes até que apenas restava salvar este homem que nadava; mas quando o helicóptero regressou, Arland Williams tinha desaparecido na água gelada.

¿O que levou o bancário Arland Williams a saltar para a água gelada e ajudar as vítimas da queda do avião? Ele tinha-se divorciado já há algum tempo, mas estava novamente noivo e iria casar-se em breve. ¿O que é que Arland Williams ganhou em saltar para a água?


Este tipo de comportamento extremo — do tipo de Arland Williams — não é raro. Nos Estados Unidos existe um ramo da psicologia que investiga os fenómenos de altruísmo. Podemos definir o altruísmo da seguinte forma:

O altruísmo é um comportamento em prol dos outros, associado a sacrifícios próprios, realizado sem expectativa de uma recompensa proveniente de fontes externas, ou, pelo menos, não realizado, em primeiro lugar, por causa de uma tal expectativa.

O conhecido psicólogo Morton Hunt, ateu inveterado, escreveu: “Até agora, é simplesmente desconhecido o que leva heróis impulsivos a arriscarem a sua vida por pessoas estranhas; a investigação não oferece praticamente nada como resposta a esta questão”.

O que levou Arland Williams a saltar para o rio Potomac não foi algo de racional, não foi “um salto de confiança que se toma com os neurónios”, como diz o Henrique Raposo.

O sentimento normal de um pai em relação a um filho recém-nascido é da mesma índole do sentimento de Arland Williams que não pensou duas vezes antes de se atirar ao rio para salvar pessoas desconhecidas em situação objectiva e concreta de necessidade. É compaixão, que é uma forma superior de amor, o ágape: a existência (do ser humano, por exemplo, a do Henrique Raposo e da sua filha recém-nascida) antecede sempre a reflexão que ele possa fazer sobre ele próprio e sobre os outros, e a reflexão dele apenas consegue compreender características de um estado ou de uma situação já ultrapassados no tempo.

Quarta-feira, 28 Setembro 2016

O Domingos Faria e a confusão do amor politicamente correcto

 

O conceito de “amor” tem sido a ser prostituído por ditos “intelectuais”, e parece que o Domingos Faria embarca no sofisma.

“(…) quando se diz que os homossexuais são incapazes de ter crianças que são o fruto dos seus actos de amor, o Swinburne parece estar a fundir os conceitos de amor e de sexo/procriação. Todavia, tais conceitos não são coextensionais; pois, há muitos actos sexuais que não são actos de amor, bem como há actos de amor que não são actos sexuais. Por exemplo, as carícias, olhares, ou até a partilha das tarefas domésticas não são afinal "actos de amor"? Mas terão esses actos de estar fundidos ou ligados com actos sexuais? Parece óbvio que não”.


Tradicionalmente, faz-se a distinção entre espécies diferentes de “amor”:

  • libido (o amor pelo prazer e o sexo)
  • eros (o amor pelo belo, o deixar-se comover pela sedução do sedutor)
  • filia (o amor entre os corações que não podem viver um sem o outro)
  • ágape (o amor imanente pela comunidade, o amor pelo “outro” em abstracto, o amor pela sociedade, o amor pela continuidade e futuro da pólis)

O amor propriamente dito é a aspiração à unidade daquilo que se completa (também na Natureza). Aquilo que, por princípio, não se completa (naturalmente), também não pode constituir uma unidade. Neste sentido, o amor entre seres humanos é constituído pela libido, eros, filia e ágape.

(more…)

Segunda-feira, 19 Setembro 2016

O Renato Epifânio e Heidegger

Filed under: A vida custa — O. Braga @ 11:42 pm
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Ao longo da história da filosofia, já foi mil e uma vezes salientada a relação essencial entre o pensamento e a linguagem. Esta não é apenas um mero instrumento que o pensamento usa para se exprimir. Dado que todo o pensamento é sempre já verbal – ou seja, dado que não há um pensamento que exista antes da linguagem –, a linguagem é, dir-se-ia, a “matéria” através da qual o pensamento se corporiza, se constitui.

No decurso da minha formação filosófica, o autor que foi mais determinante na sinalização dessa relação essencial entre o pensamento e linguagem foi o alemão Martin Heidegger. Ao longo de toda a sua obra, essa sinalização é, com efeito, uma constante. Daí que o exercício do pensamento em Heidegger seja, desde logo, um exercício linguístico. Ninguém mais do que ele, no século XX, explorou os limites da língua alemã.”

Fundamentos e Firmamentos da Filosofia Lusófona (ver aqui em ficheiro PDF)

1/ Há aqui uma aparente contradição do Renato Epifânio: por um lado, “todo o pensamento é sempre verbal”; por outro lado, “a linguagem é, dir-se-ia, a “matéria” através da qual o pensamento se corporiza, se constitui”. Ora, se “todo o pensamento é sempre já verbal”, então segue-se que linguagem não pode ser logicamente uma consequência (não pode ser a “corporização”) do pensamento (como está implícita na ideia do Renato Epifânio).

2/ “Pensamento” confunde-se praticamente com “consciência”.

3/ A relação entre o pensamento e a linguagem pode ser comparada à relação entre um pianista e um piano: embora o pianista precise do piano para tocar, o pianista pode subsistir sem o piano e não deixa de ser pianista por isso. É certo que a linguagem exprime o pensamento, mas não são “coetâneos”, ou seja, não podem ser colocados em um mesmo nível existencial ou axiomático ou de nexo causal.

4/ A consciência (traduzida pelo pensamento) é uma experiência originária — comprovável a nível intersubjectivo — que antecede a experiência objectiva (traduzida pela linguagem), tanto em termos lógicos como também em termos existenciais.

5/ A ideia do Renato Epifânio segundo a qual “não há um pensamento que exista antes da linguagem” tem como característica a auto-referência circular (auto-referencialidade).

Vejamos, por exemplo, a seguinte proposição:

“Houve um tempo em que eu não vivia, e chegará um tempo em que eu já não viverei”.

Na tentativa de pensar a minha própria não-existência, tenho que fabricar uma imagem de mim próprio como se eu fosse outra pessoa. Porém, é um facto que não podemos saltar fora de nós próprios (não podemos saltar fora da nossa consciência, e, por isso, saltar fora do nosso pensamento) de modo a pensarmo-nos a partir do exterior (a partir do conceito de “linguagem”). Se me penso a partir do exterior (a partir da linguagem), não me penso a mim; se me penso a partir do interior (a partir da minha consciência), então segue-se que não posso pensar como seria não existir (ou como seria não ter linguagem).

6/ Pergunto-me como é possível a alguém que se diz de Direita (como é o caso do Renato Epifânio) dar tanta importância a Heidegger — a não ser que considere que o nacional-socialismo alemão era de Direita.

Sábado, 27 Agosto 2016

Convém misturar Giordano Bruno com Newton

Filed under: filosofia — O. Braga @ 1:16 pm
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O Carlos Fiolhais gosta de misturar coisas, principalmente quando uma das coisas misturadas é logicamente inconsistente mas adequa-se a uma determinada ideologia que ele perfilha. Neste caso, o Carlos Fiolhais mistura, no mesmo texto, o Giordano Bruno e Newton. A essencial diferença entre os dois é que Newton via Deus como transcendente em relação às leis da natureza e ao universo (embora Deus seja interventivo em relação ao universo), enquanto que o Giordano Bruno era um panteísta (panteísmo).

Vemos aqui um artigo que nos diz (por inferência) que Newton estava correcto e que Giordano Bruno estava errado:

“After measuring alpha in around 300 distant galaxies, a consistency emerged: this magic number, which tells us the strength of electromagnetism, is not the same everywhere as it is here on Earth, and seems to vary continuously along a preferred axis through the Universe,” said Webb.

The implications for our current understanding of science are profound. If the laws of physics turn out to be merely “local by-laws”, it might be that whilst our observable part of the Universe favors the existence of life and human beings, other far more distant regions may exist where different laws preclude the formation of life, at least as we know it.”

Our Solar System "Is in a Unique Place in the Universe — Just Right for Life"

A “solução” panteísta de Giordano Bruno (e mais tarde de Espinoza, ou de Hegel) é uma forma de naturalismo; perante a assertividade da mundividência de Newton, o Carlos Fiolhais entra em uma dissonância cognitiva que tem que ser compensada pelo panteísmo do mártir naturalista Giordano Bruno.

É conhecida a polémica entre Leibniz e Newton, em que o primeiro defendia a ideia segundo a qual Deus criou o universo de uma vez por todas e depois retirou-se do mundo — ao passo que Newton defendia a ideia segundo a qual, sendo que Deus transcende o universo (é “exterior” ao universo), mas contudo Ele age constantemente (em termos de tempo cósmico) no universo apesar das leis da natureza por Ele definidas, e que sem a intervenção constante de Deus no universo não poderia haver a ordem e uma determinada constância das leis da natureza que permitem a existência da vida.

Quinta-feira, 28 Julho 2016

Kant e a beleza

Filed under: cultura — O. Braga @ 11:46 am
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“Silvana Lima é a melhor surfista do Brasil e foi duas vezes vice-campeã do mundo. Apesar disso, como não é “bonitinha”, não consegue patrocínios.

A sexualização feminina é muito comum. Enfatiza-se atributos que estimulam a atracção sexual no sexo oposto e usa-se esses atributos para avaliar as mulheres. As mini-saias das jogadoras de ténis, as poses sugestivas das raparigas nos anúncios e a atenção dispensada à roupa da ministra ilustram esta prática que muitos dizem ser machista. Ironicamente, o machismo está no diagnóstico”.

Ludwig Krippahl

Kant define o “belo” como “o que agrada universalmente, sem conceito (“Crítica do Juízo”, §9); e, por isso, distingue a beleza livre (por exemplo, a beleza de uma flor), que não pressupõe nenhum conceito, e a beleza aderente (por exemplo, a de uma mulher ou de um edifício) que pressupõe o conceito daquilo que a coisa deve ser. A beleza aderente não é um juízo de gosto propriamente dito, porque supõe o conceito daquele gosto que deve ser válido: é, em vez disso, um conceito de gosto construído por critérios intelectuais (me®dia, elite intelectual e as elites em geral, etc.).

Por isso, Kant diz que “a beleza é a forma da finalidade de um objecto, na medida em que é nele (no objecto) percebida (a beleza) sem a representação de uma finalidade”.

Ou seja, a beleza não se identifica necessariamente com o útil (a finalidade), embora o útil esteja já incluído na beleza em situação valorativa subalterna. Toda a gente (ou quase toda a gente) está de acordo sobre a validade do juízo aderente ou juízo intelectual acerca da beleza, mas o juízo do gosto ou beleza livre não tem necessidade do juízo intelectual. O senso comum acerca da beleza é apenas uma norma ideal que depende da cultura intelectual de cada época: em uma época de cultura intelectual miserável, como é a nossa, o senso comum acerca da beleza também é miserável.


Há que distinguir entre a intuição da beleza, por um lado, e o instinto sexual (masculino, por exemplo), por outro lado.

Intuição (que é uma forma de inteligência) e instinto não são a mesma coisa. O Ludwig Krippahl confunde as duas coisas. A intuição do belo não pressupõe a sua finalidade e utilidade; mas o instinto sexual não pressupõe outra coisa; a intuição do belo não pode ser manipulada pelas elites: ou é clara na consciência do Homem, ou está obnubilada pela cultura intelectual através do belo aderente do “deve ser assim e não de outra forma”.

O Ludwig Krippahl diz que a Silvana Lima “apesar de ser campeã (ou por causa disso), é sexualmente menos atraente do que uma rapariga bonitinha que não faça nada de jeito”.

Mas o juízo de beleza a que se refere o Ludwig Krippahl é o da beleza aderente, e não a da beleza livre; ele refere-se a um padrão de beleza “que deve ser”, fabricada pelas elites intelectuais do nosso tempo. A beleza aderente é determinada pela cultura antropológica imposta, pela propaganda persuasiva dos me®dia, pelas elites em relação às massas.

silvana-lima

Podemos ver na Silvana Lima a beleza livre (uma beleza exótica, até!) de que nos fala Kant. É a simetria e a harmonia das formas que define a beleza, e não os elementos e detalhes secundários do corpo. É evidente que a atracção sexual (o instinto) é, em grande parte, determinada pela beleza aderente (a da cultura antropológica imposta pelas elites) que é aquela que “deve ser válida”; mas qualquer pessoa com intuição mínima sabe imediatamente que a Silvana Lima é bela.

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