A frase em epígrafe, atribuída a Sócrates, é de autoria de Plutarco que viveu cerca de 450 anos depois de Sócrates.
Quem conhece minimamente o arquétipo mental de Sócrates [por aquilo que Platão e Xenofonte deixaram escrito acerca do mestre], sabe bem que é muito improvável que ele alguma vez tenha proferido esta frase, ou sequer pensado dessa forma acerca do seu lugar no mundo, porque para Sócrates o mundo resumia-se à cidade, e de tal forma que ele preferiu morrer a ter que abandonar Atenas. Mas não só Sócrates: o cidadão ateniense do tempo de Sólon não concebia a sua vida fora de Atenas. Portanto, essa frase-mestra atribuída a Sócrates é um mito.
Baseando-se falsamente [na minha opinião] em Sócrates, a frase-mestra “eu sou um cidadão do mundo”, de Plutarco, tem sido utilizada pelos herdeiros contemporâneos da Escola Cirenaica, fundada por Aristipo de Cirene [435-350 a.C. ~ discípulo de Sócrates] — ou seja, pelos seguidores da Utopia Negativa (Escola de Francoforte). É interessante verificar que muita da filosofia moral da Escola Cirenaica [segundo relatos de Diógenes Laércio, ou, segundo dizem outros, esses relatos foram da autoria do neto de Aristipo de Cirene, de seu nome Aristipo “o jovem”] coincide com a filosofia moral da Escola de Francoforte.
A filosofia moral [politicamente] em vigor na contemporaneidade é um sucedâneo milenar do epicurismo [Epicuro] e do seu cálculo entre prazeres e dores que influenciou Bentham & Sucessores [utilitarismo], por um lado, e do hedonismo individualista da Escola Cirenaica [actual politicamente correcto marcado pelas teorias da Escola de Francoforte], por outro lado.
Segundo Xenofonte [nas “Memoráveis”], Aristipo de Cirene afirmou que “não me encerro nos limites de uma cidade: onde quer que me encontre, sou um estrangeiro”. Dizer esta frase ou dizer que “sou um cidadão do mundo”, a diferença reside em pura semântica. Porém, a forma de pensar de Aristipo [e também de Antístenes, o cínico] era diametralmente oposta à de Sócrates, porque aquele defendia uma ética separada do colectivo [uma ética idêntica à defendida pela Escola de Francoforte, por exemplo, com Wilhelm Reich ou com Herbert Marcuse], enquanto que Sócrates [à semelhança de Platão e de Aristóteles] associava a ética e a moral individuais à vida colectiva da cidade.
Em suma, dizer que “sou um cidadão do mundo” é uma forma de reduzir a ética à pura subjectividade, e o Homem à vida animal [segundo o conceito de Platão de “vida animal”], na medida em que o cidadão é separado da sua cidade para assumir uma “cidadania” abstracta e indefinível.
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