perspectivas

Sábado, 16 Março 2019

A fórmula intemporal da estética dos objectos

Filed under: A vida custa — O. Braga @ 12:47 pm
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A professora Helena Serrão transcreve aqui um trecho de uma tal Paula Mateus (que eu não sei quem é) acerca da teoria histórica de um tal Levinson (que também não sei quem é, nem me interessa saber). O que me interessa é tentar analisar o referido textículo.

Desde logo, e contra a teoria do Tal Levinson (ou da Paula Mateus), a essência da arte não se reduz à História; a arte transcende a História: neste aspecto (como noutros) aplica-se o realismo de Platão. Toda a arte é uma aproximação (mais ou menos conseguida) ao um ideal estético/ético (ideal de beleza).

Aplica-se aqui a diferença humeana (isto é uma analogia!) entre “questões de facto”, por um lado, e as “relações de ideias”, por outro lado: certas concepções sobre “relações de ideias” são verdades necessárias (existem em uma realidade ideal, intemporal); por exemplo, dados os axiomas de Euclides, só se pode concluir que a soma dos ângulos de um triângulo é de 180 graus e não outra coisa qualquer: o axioma de Euclides existe em uma realidade ideal. Mas a obra de arte humana (empírica, temporal) já é uma “questão de facto”, é uma realidade contingente que se pode assemelhar, mais ou menos, à “realidade ideal” que é o ideal estético que existe independentemente de qualquer recurso à evidência empírica.

Mas, por outro lado, o Tal Levinson tem razão quando inclui o factor histórico (o legado cultural, civilizacional, a tradição, etc.) na actividade artística. Porém, e ao contrário do que diz o Tal Levinson, não existe “evolução na arte” — porque isso seria introduzir a validade do Historicismo na arte, por um lado, e por outro lado seria considerar a decadência (cultural) da arte como uma “evolução” no sentido positivo. Existe, sim, mudança na arte, que não é necessariamente “evolução” no sentido positivo.

O conceito (do Tal Levinson) de “direito de propriedade da arte” cheira a Pragmatismo. Nem vale a pena falar do assunto.

Quinta-feira, 28 Fevereiro 2019

Gadamer, e a estética do olho-do-cu

Filed under: filosofia — O. Braga @ 7:11 pm
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“O que há de inebriante no mau gosto, é o prazer aristocrático de desagradar” → Baudelaire

A questão do “gosto” é das mais difíceis de abordar, se a estética for separada da ética.

Por exemplo, a proposição “os gostos não se discutem” leva-me a concluir, por exemplo, de que o valor da estética do olho-do-cu é tão legítima e valiosa como o valor da estética de uma qualquer pintura de Leonardo da Vinci.

E aqui passamos à perspectiva kantiana que separa o “belo”, por um lado, do “agradável”, por outro lado: para os apreciadores da estética do olho-do-cu, a contemplação de uma imagem anal é agradável porque reflecte os seus (deles) interesses e preferências subjectivos. Para o apreciador da estética do olho-do-cu, não há nenhuma argumentação possível que o demova da sua preferência.


A professora Helena Serrão transcreve aqui um texto de Gadamer acerca do “gosto”. Gadamer invoca a teoria do gosto do judeu de Belmonte, Baltasar Gracian :

« Gracian parte do princípio de que o gosto, sensível, o mais animalesco e o mais íntimo dos nossos sentidos, já contém o ponto de partida da diferenciação que se realiza no julgamento espiritual das coisas.

O diferenciar do gosto, que é, de uma forma mais imediata, o usufruir da receptividade e da rejeição, não é, pois, na verdade, um mero instinto, mas já mantém o meio termo entre o instinto e a liberdade espiritual.

(…)

Existem pessoas que têm uma boa língua, gourmets, que cultivam essas alegrias. Assim, esse conceito do “gusto” é, para Gracian, o ponto de partida para a formação do ideal social de Gracian. O seu ideal do instruído (do discreto) consiste em que o “hombre en su punto” adquire a correcta liberdade de distância com relação a todas as coisas da vida e à sociedade, de maneira que saberá diferenciar e escolher consciente e ponderadamente. (…) »


(more…)

Quarta-feira, 27 Fevereiro 2019

Bertrand Russell “já era”

Filed under: filosofia — O. Braga @ 8:29 pm
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A professora Helena Serrão transcreve aqui um textículo de um livro de Bertrand Russell. Devo dizer que tenho a primeira edição desse livro publicada em Portugal na década de 1960. Já o estudei 1 de trás para frente depois de frente para trás. E o seu conteúdo (da filosofia de Bertrand Russell) está, em grande parte, ultrapassado, isto é, não é válido (por exemplo) no que diz respeito à alegada contraposição (ou oposição) da ciência em relação à metafísica ou à religião em geral.

Para fazermos uma crítica a Bertrand Russell, reduzindo as suas teses ao absurdo, devemos ler três autores: 1/ Karl Popper, na área da ciência; 2/ Louis Lavelle, na metafísica e na ética; e 3/ Eric Voegelin, nas ciências da História.

Naturalmente que nunca veremos a professora Helena Serrão citar quaisquer destes três autores; aliás, só lhe falta começar a citar Karl Marx, Engels e Feuerbach, por exemplo.


O que mais me choca em Bertrand Russell é a ética (dele). Em resumo e simplificando, ele diz o seguinte (hiperbolizando): se uma maioria de pessoas, em uma determinada sociedade, for de opinião (por exemplo) de que o infanticídio é moralmente aceitável, então essa ética é aceitável porque é apoiada pela maioria das pessoas (é o mesmo princípio da ética do “modelo discursivo” do marxismo cultural de J. Habermas e de K. O. Apel).

A ética de Bertrand Russell é humeana (David Hume), e por isso mesmo subjectivista e auto-contraditória — porque, a julgar pelos seus próprios parâmetros, ele objectivamente torna legítima a ética do regime nazi (por exemplo), ao mesmo tempo que subjectivamente critica o nazismo. Como em toda a ética de raiz humeana (como é o caso, por exemplo, do utilitarismo), há na ética de Bertrand Russell uma contradição insanável e irreconciliável entre o subjectivo e o objectivo.


Vamos analisar apenas uma proposição do referido texto; por exemplo:

¿Estará o mundo dividido entre espírito e matéria, e sendo assim, que é espírito e que é matéria?


bertrand-russell-300-webActualmente, só um burro coloca o problema da Realidade desta forma, depois das descobertas da física quântica. Aliás, a física quântica incomoda os “filósofos de academia”, aqueles que têm como função principal justificar o espírito empedernido de técnicos que se auto-intitulam “cientistas”. 2

Não quero eu com isto dizer que não exista eventualmente diferença entre espírito e matéria (“espírito” aqui entendido no sentido de “consciência”): o que eu quero dizer é que não existe nenhum ser humano, cientista ou não, que me dê uma definição de “matéria”. Se houver por aí um génio que me defina “matéria”, agradeço antecipada- e encarecidamente. Ora, Bertrand Russell fala de conceitos que não têm uma definição precisa, e por isso entra pela metafísica que ele próprio critica.

Porém, se partirmos do princípio segundo o qual “tudo o que tem massa é matéria”, então a "função de onda quântica" (princípio da sobreposição) 3 revela-nos de que existem aspectos da Realidade que não têm massa, e portanto não podem ser considerados como sendo “matéria”.

“A distinção entre matéria e espaço vazio teve que ser finalmente abandonada, quando se tornou evidente que as partículas virtuais [partículas elementares] podem ser criadas espontaneamente, a partir do vazio, e nele desaparecem novamente, sem que esteja presente algum nucleão ou qualquer outra partícula que interactue fortemente.

As partículas [partículas elementares] formam-se a partir do nada e desaparecem novamente no vácuo. De acordo com a “teoria de campo”, acontecimentos deste tipo estão constantemente a acontecer. O vácuo está longe de se encontrar vazio. Pelo contrário, contém um ilimitado número de partículas que surgem infinitamente.”

Fritjof Capra, “O Tau da Física”, página 184

Este trecho de Fritjof Capra destrói qualquer construção ideológica clássica de Bertrand Russell em torno do conceito de “matéria” — porque se as partículas elementares surgem e desaparecem “espontaneamente” no universo, ficamos sem saber o que significa “matéria”.


Notas

1. Estudar não é apenas ler: é analisar cada palavra do ponto de vista morfológico e sintáctico, e depois fazer uma síntese tão simplificada quanto seja possível e sem gongorismos.  
2. O chamado “cientista trabalhador” (em contraponto ao “cientista pensador”), que dispõe de fórmulas comprovadas que estão resumidas em uma espécie de “livro de receitas”: até mesmo um físico medíocre pode fazer um bom trabalho no laboratório, embora não tenham consciência das consequências da física quântica actual para a questão da Realidade.
3. Em Física, chamam de “complementaridade” a um método duplo que consiste em determinar o comportamento de uma partícula elementar, que pode comportar-se como uma onda (sem massa) ou como matéria; aos dois métodos complementares para determinar o comportamento de uma partícula elementar, chamou-se de “complementaridade”.

Segunda-feira, 28 Janeiro 2019

¿Julgamos uma coisa boa porque a desejamos (Espinoza) ? — ¿Ou porque não temos (ainda) consciência (desconhecemos, ainda) de outras coisas melhores ? (S. Tomás de Aquino)

Filed under: filosofia — O. Braga @ 9:49 pm
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¿Julgamos uma coisa boa porque a desejamos (Espinosa) ? — ¿ou porque não temos (ainda) consciência (desconhecemos, ainda) da existência de outras coisas melhores ? (S. Tomás de Aquino)


“Há também muitos casos em que agimos contra o nosso melhor julgamento e que não podemos descrever isso como sucumbindo à tentação. Nos relatos usuais de incontinência existem, começa agora a aparecer, dois temas bem diferentes que se entrelaçam e tendem a confundir-se. Um é que o desejo nos distrai do bem ou força o mal; a outra é que a acção incontinente sempre favorece a paixão egoísta suplantando o chamamento do dever e da moralidade”.


Este trecho é de Dostoievski e foi repescado neste verbete da professora Helena Serrão.

Acontece que Dostoievski foi um literato, e não propriamente um filósofo (tal como Nietzsche). O literato não se preocupa muito com a lógica — por isso é que as mulheres cabem melhor na poesia do que na filosofia.

Neste trecho, vemos como Dostoievski inverteu os termos do nexo causal: é a paixão egoísta (endógena) que está na causa da acção incontinente, e não o contrário disto. Neste sentido estrito, o desejo é própria a paixão egoísta.

Os “estados contraditórios” derivados do desejo, a que se refere Dostoievski no texto, são as dissonâncias cognitivas e as ambivalências que nos afligem enquanto seres humanos, por um lado, e por outro lado, as ambiguidades que desafiam a nossa coerência lógica.

A posição de Dostoievski (utilizando / parafraseando Austin) parece aproximar-se mais de Espinosa (um ateísmo camuflado e sofisticado) do que de Platão (realismo).

Espinosa criou uma falsa dicotomia  entre o desejo  e o valor, fazendo com que o objecto do desejo seja (alegadamente, segundo ele) uma fabricação humana (Espinosa faz lembrar aqueles “Prometeus” cientificistas modernos que dizem que “o ser humano inventou os números primos” e/ou que “a lógica evolui”).

Existem valores que o ser humano ainda não descobriu (realismo de Platão, Nicolau Hartmann, Louis Lavelle).

Segunda-feira, 27 Fevereiro 2017

Síntese crítica da teoria subjectivista niilista de Peter Singer (parte 1)

Filed under: A vida custa,Esta gente vota — O. Braga @ 2:06 pm
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Um dos problemas do consequencialismo (em ética), é a certeza do futuro. O consequencialista puro tem a certeza do futuro.

Por exemplo: se eu vejo um automóvel a uma velocidade de 150 quilómetros / hora dentro da cidade, posso afirmar o seguinte:

“É provável que aquele automóvel tenha um acidente dentro da cidade”.

Se o automóvel vai a 80 quilómetros / hora, posso dizer:

“É verosímil que aquele automóvel tenha um acidente dentro da cidade”.

Se o automóvel vai a 40 quilómetros / hora, posso afirmar:

“É possível que aquele automóvel tenha um acidente dentro da cidade”.

Mas em nenhum caso posso ter a certeza, porque ninguém conhece o futuro. Mas o consequencialista conhece o futuro: senão vejamos o que diz o Peter Singer:

“On absolute moral standards: There are still absolutists. Some are proponents of the “new natural law” tradition, which has its roots in Catholic moral theology, even though it is presented as a secular position. Others are Kantians, many of them outside English-speaking philosophy. In Germany, for example, you would find wide support for the idea that we should not torture a child, even if (as in Dostoevsky’s example in The Brothers Karamazov) that would produce peace on earth forever. To me it seems obvious that if by torturing one child you could prevent a vast number of children (and adults) suffering as much or more than the child you have to torture, it would be wrong not to torture that child.”

Peter Singer diz que torturar uma criança não é mau, se a tortura dessa criança evitar que um vasto número de crianças e adultos venham a sofrer também (o nazi Josef Mengele pensava da mesma forma, quando fazia experiências médicas com crianças judias).

Há aqui uma certeza, da parte de Peter Singer: a de que a consequência do sofrimento (causado propositadamente) dessa criança aliviará, no futuro, o sofrimento de muitas outras crianças e de adultos. E por isso, diz Peter Singer, a tortura dessa criança até é coisa muito boa de se fazer; porque ele tem a certeza do futuro, tal como Mengele tinha.

Mas se a tortura for aplicada em um porco ou num cão, Peter Singer já não concorda com o seu próprio consequencialismo, porque ele considera que um porco ou um cão é um animal superior a uma criança. Mas deixemos esta incongruência para um outro verbete.

Não sei se Peter Singer tem filhos, mas se torturassem um filho dele para “bem da humanidade”, talvez ele não ficasse feliz. Talvez ele não tenha filhos para poder defender a tese da “tortura racional de uma criança”. (Por outro lado, Peter Singer é contra a tortura de terroristas islâmicos no GITMO; porque um terrorista islâmico é um adulto, e não uma criança: para Peter Singer, uma criança tem um valor ontológico inferior a um adulto).

O problema do consequencialismo puro é que não distingue o racionalmente impossível, o possível, o verosímil, o provável, e a certeza.

Para o consequencialista puro, o futuro é sempre uma certeza subjectiva, ou intersubjectiva de uma elite. E como o futuro é sempre uma certeza da elite, a sua moral é teleológica: os fins justificam quaisquer meios, porque se tem a certeza de que os fins se realizarão exactamente conforme o pressuposto.

No consequencialista puro coexiste um romântico e um positivista (porque o positivismo é o romantismo da ciência).

Mas mesmo que tivéssemos a certeza do futuro, segundo o qual a tortura de uma criança beneficiaria muitas outras crianças e adultos, essa tortura seria barbárie, do ponto de vista ético — porque nem todos os fins justificam quaisquer meios; há limites.

E aqui o limite é o do ADN da criança que é um ADN humano, único e irrepetível.

O que nos separa irredutivelmente de Peter Singer é o valor do ser humano: para ele, o ser humano tem um determinado valor, dependendo se é uma criança, um adulto ou um velho. Porém, o problema de Peter Singer é que não existe um consenso universal e geral sobre quanto vale um ser humano; e portanto, o valor que ele dá ao ser humano é um valor subjectivo que, ipso facto, não pode ser universal e, por isso, não se pode transformar em uma teoria ética propriamente dita.

Quarta-feira, 15 Fevereiro 2017

A eutanásia e a autonomia do indivíduo

 

Um artigo escrito por um Diogo Costa Gonçalves, acerca da eutanásia e com o título “Eutanásia e o ‘mito da autonomia’”:

“Sucede, porém, que a autonomia é um mito: um novo dogma moderno com pouco sustentação na realidade. Não, não somos autónomos!”


“Autonomia” é também, e em primeiro lugar, o livre-arbítrio de S. Tomás de Aquino. Em segundo lugar, é sobretudo a “autonomia” segundo Kant que resume o conceito de livre-arbítrio de S. Tomás de Aquino.

No sentido comum ou vulgar, autonomia é a capacidade de um indivíduo ou de um grupo de determinar ele próprio o seu modo de organização e as regras em relação às quais se submete.

Mas, no sentido filosófico (ética) e moral, a autonomia pode ser uma de duas coisas:

1/ Em Kant, é a característica da vontade que se submeteu livremente à lei moral sancionada pela razão pura prática, por respeito a essa lei, e excluindo qualquer outro móbil.

2/ liberdade moral do sujeito que age de acordo com o que a sua razão lhe dita e não por simples obediência às suas paixões.


Em Kant, a autonomia é simultaneamente liberdade negativa e liberdade positiva.

A liberdade negativa é aquela que consiste em não ser impedido de agir — a de não ser impedido por outrem naquilo que desejamos fazer, ou a liberdade de se exprimir sem censura.

Em contraponto, a liberdade positiva é a liberdade do cidadão-legislador, segundo o princípio de autonomia de Kant, que consiste em tomar parte nas decisões políticas e públicas, e de co-exercer a autoridade em geral.

Segundo Kant, uma acção não pode ser verdadeiramente moral se não obedece a razões sensíveis, exteriores à razão legislativa. Por exemplo, segundo Kant, se ajo por amor à Humanidade, não ajo por dever, mas por sentimento. Ora, uma acção cuja máxima se baseia num sentimento não pode aspirar à universalidade e servir de lei a todo o ser racional.

Em contrapartida, e seja qual for o meu sentimento em relação à Humanidade, “tratar a Humanidade na minha pessoa e na pessoa de qualquer outro, sempre simultaneamente como um fim, e não simplesmente como um meio”, é a máxima exigível universalmente, um dever para todos; a vontade que determina a sua acção a partir dela, é uma vontade autónoma, na medida em que se submete livremente à lei da razão pura prática.


Os que defendem a legalização da eutanásia e afins (que são todos de esquerda, mesmo que digam que não são de esquerda) utilizam o conceito de “autonomia” de forma abusiva e falaciosa, porque não cabe em nenhuma das duas noções de “autonomia” supracitadas. É neste sentido que o Diogo Costa Gonçalves tem razão: em nome da “autonomia” (vista apenas como liberdade negativa), negam-se deveres (liberdade positiva), por exemplo, o dever de solidariedade.

Ou seja: a autonomia (enquanto livre-arbítrio) não é um mito, como diz o Diogo Costa Gonçalves. O que que esquerda faz (por exemplo, Rui Rio, que diz que não é de esquerda) é interpretar erroneamente o conceito de “autonomia”; é ver só uma parte do conceito de “autonomia”, ou seja, vê-lo à luz das paixões (sentimentalismo), e não à luz da razão que universaliza a vontade e a lei moral. De resto, o Diogo Costa Gonçalves tem razão:

“Se a dependência é vista como um fardo, como um indignidade, o direito a uma morte rápida e indolor transforma-se facilmente num dever de morrer dignamente, de não ser pesado, de não onerar o outro com a minha existência.

Não tenhamos dúvidas: é isto o que está em debate na eutanásia. O sofrimento do outro – por quem, infelizmente, poucos realmente se interessam – é apenas um pretexto emocional para a discussão… tudo mais (menos cuidados paliativos, mais consentimento informado, etc.) são minudências de uma discussão que só não vê quem não quer.”


 

O utilitarismo da esquerda contemporânea

Segunda-feira, 13 Fevereiro 2017

Tirem-me deste filme…!

Filed under: Esta gente vota — O. Braga @ 11:53 am
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“E a tua tia sabes de que tem cara, de p., sabes o que é, uma mulher tão porca que f. com todos os homens e mesmo que tenha r. para f. deixa que lhe ponha a p. no c.”


Este é o excerto da polémica do livro “O Nosso Reino” de Valter Hugo Mãe dado a ler aos jovens de 13 anos do liceu Pedro Nunes, em Lisboa.

O comentário do comissário do Plano Nacional de Leitura, o poeta Fernando Pinto do Amaral, dado à Lusa, foi o seguinte:

“Não está em causa a sua qualidade literária, o que houve foi um problema de inserção na lista. O livro entrou no 3.º ciclo por lapso, porque foi escolhido para o secundário”.

O problema é que é a própria qualidade literária que está em causa aqui: o Mãe escreve mal e é pouco credível no que escreve, o Mãe não devia estar no Plano Nacional de Leitura, aliás uma fábrica para promover amigos e lhes vender os livros como pães.

Os palavrões de Valter Hugo Mãe


O problema deste país é profundo; não se resolve facilmente. Mas se não se resolver, teremos em breve um totalitarismo de esquerda.

Segunda-feira, 30 Janeiro 2017

A Maria Filomena Mónica e a eutanásia

 

Por vezes pergunto-me como foi possível que gente como (por exemplo) a Maria Filomena Mónica (burrinha todos os dias, mas com aqueles ares de gaguez intelectual) ganhou a dimensão cultural que tem neste país.

No Ocidente, as leis foram evoluindo com base na tradição judaico-cristã. Deste ponto de vista, o corpo é o invólucro da alma, o que o tornaria sagrado. Segundo esta concepção, tudo o que acontece aos doentes terminais faria assim parte do desígnio divino”.

Ó Filomena: não é só no Ocidente, porra! Lê um poucochinho e deixa-te de merdices.

Lê o que dizem as correntes mais populares do Hinduísmo acerca da morte (do ser humano); e do Budismo popular (da religião popular budista, e não da filosofia intelectualóide budista), e do xintoísmo, do Confucionismo, e dos monoteísmos também (incluindo a religião do Zoroastro). Não digas asneiras, Filó! Já só nos faltavas aqui tu a botar umas bacoradas pela boca afora…!

E outra coisa, Filó: em ética, não existe uma “versão científica”. Mete essa merda na tua cabecinha bacoca!

E o progresso — ou “evolução” da sociedade, como dizes — não é uma lei da natureza: basta uma geração de bárbaros da tua espécie para se futricar uma civilização inteira…. ¿topas?

O importante, ó Filomena, não é saber se “o progresso da medicina alterou tudo” ou nada: o importante é a cultura antropológica de uma sociedade que pode existir com determinadas características em um tempo em que o Homem pode viajar para Marte, ou noutro tempo em que ainda havia o médico de aldeia. São os valores da ética, Filozinha, que são universais e intemporais (¿sabes o que é um axioma, Filó?). Valores. Mas não os confundas com notas de Euro.

A tua menção de Stuart Mill, Filozinha, é colada com cuspe. Devias ler o que um outro utilitarista (Bertrand Russell) escreveu sobre ele; e também o que G.E. Moore escreveu acerca do utilitarismo. E se “nenhuma opinião deve ser suprimida” (com dizes), talvez não seja má ideia trazer à colação a opinião de Mengele acerca dos judeus: encaixava que nem uma luva na tua discussão sobre a eutanásia.

Terça-feira, 8 Novembro 2016

O Cristiano Ronaldo, o Rolando Almeida, e Nozick

Filed under: A vida custa — O. Braga @ 12:20 pm
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O Rolando Almeida escreve aqui:

“Cristiano Ronaldo assinou novo contrato com o Real Madrid, o seu clube. Passa a ganhar cerca de 20 milhões de euros de salário por ano. Será moralmente justo? Deve o Estado intervir e cobrar mais impostos ao vencimento do Ronaldo para equilibrar a redistribuição da riqueza? Se o Ronaldo não é totalmente responsável pelo seu talento (pode ser hereditário) será justo ganhar mais que todos os outros que não podem competir pela lotaria da natureza em igualdade de circunstâncias? Vale a pena aproveitar a ocasião e perder 30 minutos a ver esta aula de Harvard com o professor e filósofo Michael Sandel”.

E depois segue o vídeo.


Ora bem. Michael Sandel é um comunitarista (não confundir com “comunista”), tal como, por exemplo, MacIntyre. Portanto, Sandel tem uma posição publicada contra Nozick e contra o libertarianismo. Mas, por outro lado, Sandel (como todos os comunitaristas, por exemplo, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, e até Michael Michael Walzer) também é crítico do utilitarismo nas suas diversas manifestações, incluindo John Rawls. O vídeo não apresenta a opinião de Sandel.

O libertarianismo parte do princípio do “I Own Myself” (“eu sou proprietário de mim próprio”); o princípio está errado, e por isso a teoria consequente está errada.

Eu só seria proprietário de mim próprio se eu fosse o criador (existencial) de mim mesmo; e mesmo que eu fosse o criador de mim próprio, a criação é limitação (o criador limita aquilo que é criado); porque a criação é transformar qualquer coisa em alguma coisa.

Mas o facto de eu não ser o proprietário de mim próprio não significa que eu seja propriedade de outro ser humano ou do Estado. Nem significa que o Estado possa alegar a “defesa da minha liberdade” tornando-me propriedade dele.

A única forma de ultrapassar este problema é pensar como Montesquieu: “Se Deus não existisse, teria que ser inventado” — porque a partir do momento em que Deus não exista, o Estado passa a ser o deus que é nosso proprietário (Rolando Almeida); ou então, na ausência de Deus, passamos conceber-nos a nós próprios como “proprietários de nós mesmos”, como pensam os libertários e Nozick.

A partir do momento em que o conceito de “propriedade” passa ter um cariz metafísico, torna-se mais fácil estabelecer o equilíbrio de interesses entre aquilo que é direito de propriedade do Cristiano Ronaldo, por um lado, e aquilo que é o direito de propriedade do Estado e da sociedade em geral, por outro lado.

Sábado, 8 Outubro 2016

O Henrique Raposo e o amor de pai

 

Eu já não compro novos livros publicados em Portugal; porque são escritos segundo o aborto ortográfico e eu não sou masoquista, e porque, em geral, a qualidade do que se escreve hoje é baixa. A julgar pela amostra do novo livro “Nós, os Pais”, escrita pelo Henrique Raposo:

“(…) não percebo aquelas pessoas que dizem que sentem logo empatia com os filhos acabados de nascer; não entendo a conversa sobre o encaixe perfeito logo no primeiro segundo, do amor imediato por aquelas criaturinhas, do choro comovido no parto (…)

¿O que move um ser humano — que não é religioso!; e que não espera nenhuma vida eterna —, por exemplo, a irromper em uma casa em chamas, a fim de salvar uma criança desconhecida que chora?


Em 1982 correu pelo mundo uma história que incomoda não só qualquer sociobiólogo, como um qualquer colaborador do blogue Rerum Natura.

air-floridaArland Williams, um homem na casa dos 40, revisor de um Banco em Washington, ia a caminho de casa em um fim de tarde; e no momento em que chegou à ponte que atravessa o rio Potomac na rua 14, ele ouviu, de repente, o barulho ensurdecedor de um grande avião que passou por cima da ponte e caiu no rio gelado, projectando destroços e corpos humanos.

Das 84 pessoas a bordo do voo da Air Florida, 79 morreram imediatamente. Mas a tripulação de um helicóptero de salvamento, que chegou pouco tempo depois, viu três mulheres e dois homens agarrados a um destroço de flutuava na água, e, muito perto deles, um outro homem que procurava manter-se à tona da água : este agarrou a corda que o helicóptero fez descer e deu-a à mulher que estava a seu lado. Quando o helicóptero regressou, voltou a dar a corda a outro homem; esta cena repetiu-se tantas vezes até que apenas restava salvar este homem que nadava; mas quando o helicóptero regressou, Arland Williams tinha desaparecido na água gelada.

¿O que levou o bancário Arland Williams a saltar para a água gelada e ajudar as vítimas da queda do avião? Ele tinha-se divorciado já há algum tempo, mas estava novamente noivo e iria casar-se em breve. ¿O que é que Arland Williams ganhou em saltar para a água?


Este tipo de comportamento extremo — do tipo de Arland Williams — não é raro. Nos Estados Unidos existe um ramo da psicologia que investiga os fenómenos de altruísmo. Podemos definir o altruísmo da seguinte forma:

O altruísmo é um comportamento em prol dos outros, associado a sacrifícios próprios, realizado sem expectativa de uma recompensa proveniente de fontes externas, ou, pelo menos, não realizado, em primeiro lugar, por causa de uma tal expectativa.

O conhecido psicólogo Morton Hunt, ateu inveterado, escreveu: “Até agora, é simplesmente desconhecido o que leva heróis impulsivos a arriscarem a sua vida por pessoas estranhas; a investigação não oferece praticamente nada como resposta a esta questão”.

O que levou Arland Williams a saltar para o rio Potomac não foi algo de racional, não foi “um salto de confiança que se toma com os neurónios”, como diz o Henrique Raposo.

O sentimento normal de um pai em relação a um filho recém-nascido é da mesma índole do sentimento de Arland Williams que não pensou duas vezes antes de se atirar ao rio para salvar pessoas desconhecidas em situação objectiva e concreta de necessidade. É compaixão, que é uma forma superior de amor, o ágape: a existência (do ser humano, por exemplo, a do Henrique Raposo e da sua filha recém-nascida) antecede sempre a reflexão que ele possa fazer sobre ele próprio e sobre os outros, e a reflexão dele apenas consegue compreender características de um estado ou de uma situação já ultrapassados no tempo.

Domingo, 25 Setembro 2016

Estou um pouco surpreso com a evolução da Raquel Varela

 

“(…) nada disto autoriza é que o Estado passe a regulamentar o que se veste, porque isso seria tornar o republicanismo francês em ideologia de Estado e acabar com o princípio do laicismo que diz o seguinte: todas as religiões (e os ateus) têm que ter condições, dadas pelos Estados, para ser praticadas. É no terreno político e social que se combate o obscurantismo, e o relativismo cultural pós-moderno, não é no terreno da concentração de poder no Estado”.

Raquel Varela

Naturalmente que ela fala da polémica das burkas e burkinis em França.


1/ Vemos aqui em baixo um exemplo de uma apresentadora italiana de televisão: chama-se Marina Nalesso e apresenta os telejornais com um crucifixo ao peito e com duas medalhas católicas (uma delas de Nossa Senhora de Fátima). A cruz e as medalhas são símbolos. 1

marina-nalesso

Vemos aqui uma outra mulher, Fatma Nabil, da televisão egípcia (¿ou será “egícia”?, ¿segundo o Acordo Ortográfico?), desta vez, islâmica. Os símbolos são diferentes; é a própria indumentária que é simbólica do estatuto da mulher islâmica. Se os símbolos são diferentes, as religiões são diferentes, e as culturas também são diferentes. Portanto, já chegamos à conclusão de que as religiões (e as culturas) são diferentes; o que falta saber é se são equivalentes, ou seja, se podem ser valorizadas de forma igual ou semelhante.

fatma-nabil

2/ naturalmente que se pode dizer que “os gostos não se discutem”; está na moda dizer-se. Kant não concordava: dizia ele que os gostos devem ser discutidos (o racionalista Kant deixou de estar na moda: hoje é mais o romântico Rousseau) — não porque Kant tivesse grande apetência pela estética, mas porque se preocupava com a política. A verdade é que a estética (o belo) e a ética (o bom) estão intimamente ligadas, e a discussão do “belo” e do “bom” é também uma discussão política.

mulher-romana3/ também se pode dizer que “a mulher tem todo o direito de se tapar” — o mesmo soe dizer-se que a mulher tem o direito de não andar com as mamas à mostra e a exibir publicamente o pernão. Este argumento é pertinente e deve ser acolhido como racional. De facto, a mulher tem esse direito.

Mas — ao contrário do que se passa no Islamismo —, no Cristianismo o recato feminino e a indumentária “pudica”, por assim dizer, nunca foram símbolos religiosos em si mesmos, mas antes foram heranças de uma cultura anterior ao Cristianismo (por exemplo, a cultura romana ou grega). Em contraponto, no Islamismo, essa cultura mais antiga da indumentária feminina “pudica” foi integrada na cultura antropológica islâmica como um símbolo religioso entendido em si mesmo.

Teresa-de-AvilaVemos, por exemplo, a monja medieval Teresa de Ávila: a base da indumentária das monjas era (e é ainda hoje) uma herança de uma cultura anterior ao Cristianismo, e não um símbolo religioso entendido em si mesmo. Hoje, a indumentária das monjas segue uma tradição que não se constitui em si mesma como um símbolo religioso — e tanto assim é, que uma qualquer mulher católica não é coagida pelo Vaticano a vestir-se de freira.

Assim como não podemos confundir ou misturar a arte (a estética), por um lado, e a política, por outro lado — assim não podemos confundir a religião e a cultura de um determinado tempo, a não ser que a religião não passe de um princípio de ordem política que se aplica de forma intemporal, como é o caso do Islamismo.

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4/ quando o modo de vestir (a indumentária) se transforma (em si mesma) em um símbolo religioso (e deixa de ser apenas uma manifestação cultural ou uma tradição, como aconteceu ao longo da história do Cristianismo e da Europa), já não estamos na esfera da liberdade moral individual e/ou colectiva, mas antes em uma forma mais ou menos evidente de coerção social e cultural (negação da liberdade). É evidente que o Islamismo é um princípio de ordem política totalitária.

Neste sentido, é um erro afirmar que “todas as religiões são iguais e têm que ser tratadas da mesma forma pelo Estado”. Um erro crasso da Raquel Varela — porque “os gostos devem ser discutidos”, como afirmou Kant.


Nota
1. Os símbolos são claros, são reconhecidos socialmente, têm um poder imanente de convencimento e participam espiritualmente naquilo que simbolizam. Porém, não devemos confundir símbolos com sinais. Os sinais também são claros e reconhecidos: no entanto, falta-lhes a participação no conteúdo do representado/simbolizado, porque, em regra, os sinais são escolhidos arbitrariamente (por exemplo, os sinais de trânsito). Por isso não é possível comparar, por exemplo, um sinal de trânsito com o símbolo de um Deus pessoal, ou mesmo com o símbolo de uma equação matemática.

O símbolo, para além do significado cultural que o sinal também pode ter, tem um significado espiritual (relativo à experiência humana subjectiva que adquire uma experiência intersubjectiva e universal) que o sinal não tem. Um sinal só passa a ser um símbolo quando passa a ter um conteúdo com relação a um representado, o que lhe retira a arbitrariedade previamente existente. Um símbolo nunca se muda, porque isso resultaria também na dissolução do seu significado; em contraponto, um sinal pode ser mudado mantendo-se o seu significado anterior.

Sábado, 24 Setembro 2016

Mais uma acha intelectualóide para o inferno da eutanásia

 

cabine-suicida-webParece que vem aí mais um livro que aborda a eutanásia, desta feita de uma tal Lucília Nunes que dizem ser doutorada em filosofia (tem um alvará de inteligência). O título do livro: “E Quando Eu Não Puder Decidir?”.

Ao longo de milénios, pelo menos desde os gregos antigos, que uma pergunta deste cariz não fazia sentido (apesar da “tolerância” grega em relação ao infanticídio) — porque a noção do “eu” não fazia sentido sem a pólis, por um lado, e sem a família natural, por outro lado.

Não li nem vou ler o livro, porque o título do dito é uma síntese do seu conteúdo: caminhamos para uma sociedade com pouca liberdade política (ao contrário do que acontecia na pólis ateniense) e sem família natural (em que o indivíduo se encontra isolado face ao Estado).

Este tipo de sociedade é, para a Lucília Nunes como para a maioria dos detentores de alvarás de inteligência, inevitável, é uma espécie de fatalidade do “processo histórico” — e daí, talvez, a preocupação da Lucília Nunes com a morte como um “processo”, como se pudéssemos prever que um jovem de 20 anos morra em um acidente de automóvel, por exemplo, e que ele conceba a previsão da sua própria morte como um “processo” imanente.

«Ao longo dos tempos, fomos lidando com a morte, umas vezes de formas mais próximas, actualmente de forma mais distanciada, às vezes como se não existisse. Para isso também tem contribuído o “morrer no hospital”, criando distância em relação ao quotidiano, afastando doentes e moribundos do contacto com os seus, “medicalizando” a morte. Prestamos pouca atenção ao facto de não podermos vencer a morte mas podermos lidar com o medo que temos dela

Este assunto da interpretação imanente da morte (uma variante moderna da imanentização individual do éschatos) foi exaustivamente abordada por Gadamer e interpretada por Sofia Reimão em um livro que eu analisei sumariamente em vários verbetes.

Uma coisa é certa: na sociedade da Lucília Nunes, a eutanásia a pedido do cidadão ( e independentemente de estar fisicamente doente ou não), vai passar a ser um “direito humano”. Mas tal como pressentiu Gadamer, a sociedade da Lucília Nunes não resume a cultura da humanidade inteira, e parece invencível como os dinossauros pareciam invencíveis.

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