Num postal sobre José Saramago, alguém colocou o seguinte comentário:
A ideia do comentarista é esta: o ódio de Saramago em relação à ordem cósmica e à estrutura fundamental da realidade, é positiva porque ele é um “homem extraordinário” — um super-homem e um exemplo de um Aeon gnóstico moderno. Eu, que critico o gnosticismo de Saramago, é que tenho ódio porque sou um Hílico moderno, ou seja, um “normal”. Segundo o gnosticismo moderno — e em analogia com o gnosticismo antigo —, os “normais” nunca conseguirão a “salvação”.
O problema é que o comentarista já não pensa quando exprime as suas ideias: o gnosticismo moderno entranhou-se na cultura coeva de tal forma, que se concebeu uma espécie de “casta superior” sob a égide de uma ideologia soteriológica, baseada agora não já em uma alegada superioridade espiritual e metafísico-transcendental que era característica do gnosticismo antigo, mas antes em uma superioridade metafisico-transcendental no sentido niilista atribuído por Heidegger (em que a transcendência passa a ser sinónimo de imanência, e labora-se, portanto, em uma espécie de um “monismo niilista e materialista” e de um culto neo-paleolítico das forças impessoais da natureza terrena), escorada em uma superioridade darwinista e supremacista que atribui à esquerda uma espécie de linhagem genética salvífica e de raça superior.
Para os gnósticos modernos (como para os antigos), o valor atribuído a uma pessoa não é baseado em uma ética extraída e derivada da ordem cósmica (como passou a acontecer com a evolução do neolítico para as culturas superiores da História), mas em critérios neolíticos de uma elite organizada que reclama para si o direito de julgar a ética de forma arbitrária, exclusivista e totalmente independente da inserção do Homem no cosmos. A autoridade de facto de um qualquer ser humano é totalmente desvalorizada pelos gnósticos, e a autoridade de direito auto-atribuída a essa elite é glorificada como sendo o “caminho da salvação”.
O romantismo, que teve o seu expoente máximo no louco Nietzsche, dividiu a humanidade em “gente normal” (os Hílicos do gnosticismo medieval) e os “super-homens” (os Aeons do gnosticismo medieval). A parti daí, tudo foi possível, incluindo os mais de 200 milhões de vítimas decorrentes da hegemonia cultural das religiões políticas no século XX (do nazismo e do marxismo).
O movimento romântico em arte, em literatura e em política liga-se com uma espécie de juízo subjectivo da parte de homens que julgam a realidade não como membros da comunidade, mas como um objecto esteticamente deleitoso de contemplação. Em termos estritamente realistas, os leões são mais belos que as gazelas, mas o senso-comum (o realismo) prefere aqueles atrás de grades. O romântico típico (como Nietzsche) tira as grades em torno do leão e dá-lhe gozo ver a actividade lúdica do leão em que este devora a gazela. Exorta o homem a ser leão, e quando o consegue, o resultado não é agradável.
Quando Eric Voegelin escreveu que “o gnosticismo é a matriz do pensamento moderno”, tinha razão quando vemos gente anónima — quiçá até mesmo pouco instruída — a decalcar inconscientemente as ideias de Nietzsche que foi um dos expoentes do gnosticismo moderno.
Gente que pensa como o comentarista citado deve ser combatida com todas as forças e por todos os meios possíveis e imaginários, porque estamos em presença do gnosticismo moderno que considera a existência de uma elite de super-homens (os modernos Aeons) a quem é permitido tudo, incluindo a decisão de vida e de morte da maioria inferior (os modernos Hílicos).
[…] a beleza estética de uma explosão atómica sem nos preocuparmos com a autoria da “obra”. Já aqui falei das consequências do romantismo levado até às consequências a que o estúpido as […]
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