perspectivas

Segunda-feira, 19 Setembro 2016

O Renato Epifânio e Heidegger

Filed under: A vida custa — O. Braga @ 11:42 pm
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Ao longo da história da filosofia, já foi mil e uma vezes salientada a relação essencial entre o pensamento e a linguagem. Esta não é apenas um mero instrumento que o pensamento usa para se exprimir. Dado que todo o pensamento é sempre já verbal – ou seja, dado que não há um pensamento que exista antes da linguagem –, a linguagem é, dir-se-ia, a “matéria” através da qual o pensamento se corporiza, se constitui.

No decurso da minha formação filosófica, o autor que foi mais determinante na sinalização dessa relação essencial entre o pensamento e linguagem foi o alemão Martin Heidegger. Ao longo de toda a sua obra, essa sinalização é, com efeito, uma constante. Daí que o exercício do pensamento em Heidegger seja, desde logo, um exercício linguístico. Ninguém mais do que ele, no século XX, explorou os limites da língua alemã.”

Fundamentos e Firmamentos da Filosofia Lusófona (ver aqui em ficheiro PDF)

1/ Há aqui uma aparente contradição do Renato Epifânio: por um lado, “todo o pensamento é sempre verbal”; por outro lado, “a linguagem é, dir-se-ia, a “matéria” através da qual o pensamento se corporiza, se constitui”. Ora, se “todo o pensamento é sempre já verbal”, então segue-se que linguagem não pode ser logicamente uma consequência (não pode ser a “corporização”) do pensamento (como está implícita na ideia do Renato Epifânio).

2/ “Pensamento” confunde-se praticamente com “consciência”.

3/ A relação entre o pensamento e a linguagem pode ser comparada à relação entre um pianista e um piano: embora o pianista precise do piano para tocar, o pianista pode subsistir sem o piano e não deixa de ser pianista por isso. É certo que a linguagem exprime o pensamento, mas não são “coetâneos”, ou seja, não podem ser colocados em um mesmo nível existencial ou axiomático ou de nexo causal.

4/ A consciência (traduzida pelo pensamento) é uma experiência originária — comprovável a nível intersubjectivo — que antecede a experiência objectiva (traduzida pela linguagem), tanto em termos lógicos como também em termos existenciais.

5/ A ideia do Renato Epifânio segundo a qual “não há um pensamento que exista antes da linguagem” tem como característica a auto-referência circular (auto-referencialidade).

Vejamos, por exemplo, a seguinte proposição:

“Houve um tempo em que eu não vivia, e chegará um tempo em que eu já não viverei”.

Na tentativa de pensar a minha própria não-existência, tenho que fabricar uma imagem de mim próprio como se eu fosse outra pessoa. Porém, é um facto que não podemos saltar fora de nós próprios (não podemos saltar fora da nossa consciência, e, por isso, saltar fora do nosso pensamento) de modo a pensarmo-nos a partir do exterior (a partir do conceito de “linguagem”). Se me penso a partir do exterior (a partir da linguagem), não me penso a mim; se me penso a partir do interior (a partir da minha consciência), então segue-se que não posso pensar como seria não existir (ou como seria não ter linguagem).

6/ Pergunto-me como é possível a alguém que se diz de Direita (como é o caso do Renato Epifânio) dar tanta importância a Heidegger — a não ser que considere que o nacional-socialismo alemão era de Direita.

Sexta-feira, 16 Outubro 2015

Heidegger e o grau zero da filosofia

Filed under: filosofia — O. Braga @ 8:53 am
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“Qualquer pessoa pode seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites. Por quê? Porque o homem é o ser (Wesen) que pensa, ou seja, que medita (sinnende). Não precisamos, portanto, de modo algum, de nos elevarmos às ‘regiões superiores’ quando reflectimos. Basta demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora; neste pedaço de terra natal, agora, na presente hora universal.”

Martin Heidegger

Este texto de Heidegger cria uma dicotomia entre aquilo que “está perto” ou “mais próximo”, por um lado, e por outro lado aquilo que pertence às “regiões superiores” (a religião, ou a metafísica). Embora seja uma tentativa de negação da metafísica, o texto é metafísico — embora se trate de uma metafísica negativa.

A dicotomia é falsa; o facto de meditarmos sobre aquilo que “está perto” ou “mais próximo”, não implica a necessidade de não meditarmos também sobre aquilo que pertence às “regiões superiores”. Para além de falsa, a dicotomia reduz a Realidade inteira ao mundo sub-lunar limitado pelos satélites artificiais — o que é característica do gnosticismo moderno (visão anti-cósmica).

Ademais, o conceito de “regiões superiores” sugere a ideia de “regiões longínquas”, em contraponto à ideia de “regiões mais próximas”.

Ou seja, Heidegger nega o conceito de Metaxia: o encontro da consciência humana com a transcendência (as “regiões superiores”) não ocorre na história dos acontecimentos mundanos, mas antes ocorre no processo interno da experiência da consciência humana. A Metaxia é o lugar onde o ser humano participa, com o divino, na realidade da consciência. E não há nada “mais próximo” do ser humano do que a sua própria consciência.

Segunda-feira, 5 Maio 2014

Um pouco de pedagogia em torno de Heidegger

Filed under: filosofia — O. Braga @ 10:37 am
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Eu escrevi um verbete com o título “Introdução à Merdafísica de Heidegger”, e um leitor brasileiro fez o seguinte comentário que não publiquei, e explicarei (adiante) por quê. Convém dizer que os comentários dos portugueses são ainda piores, porque não existem: Portugal é hoje caracterizado, em geral, pela ausência de pensamento crítico. Ou melhor: o pensamento português é tão crítico que já ninguém pensa. Pelo menos, os brasileiros ainda pensam alguma coisa…

“Quem é Orlando Braga? Sim, esse é primeiro ponto. Argumento de autoridade. Seria a mesma coisa que um “José da Esquina”, enfim, começasse a desmerecer e a «refutar» um Einstein. Orlando Braga é ninguém. Essas linhas não tocam a superfície da filosofia heideggeriana. É muita falta de seriedade, e só pode vir dos descendentes dos mouros. Se quiser ser levado a sério, vá a todas as obras e pensamentos heideggerianos, começando do 1o volume ao último volume. Só que não precisa muito, duvido que entenda até fragmentos, como demonstrou acima. TODA A COMUNIDADE E TODA A HUMANIDADE COMEMORARIA A SUA SUPERAÇÃO À FILOSOFIA, E A FILOSOFIA HEIDEGGERIANA EM PARTICULAR!!!”

Ler o resto aqui, em ficheiro PDF.

Desde logo, no comentário há problemas de língua. Por exemplo, seria correcto escrever “superação da filosofia”, e não “superação à filosofia”. Os portugueses e brasileiros, antes de se arvorarem no direito de fazer críticas, deveriam saber escrever a língua.

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Sábado, 26 Outubro 2013

O problema da coisa

Filed under: Humor — O. Braga @ 5:32 am
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Heidegger escreveu um livro cujo título é ”O Problema da Coisa”. Agora imagine o caro leitor (extenditur ad speciem humanam, etiam feminis) a magnitude do problema de Heidegger. Kant já nos tinha falado na “Coisa Em Si”, mas nunca ninguém tinha abordado com tamanho desassombro o problema da coisa.

heideggerPara Heidegger, o ente é “o que nos enfeitiça e nos exalta”, ou seja, é a coisa, por um lado; e por outro lado, a coisa é um ente que tem que ser cuidado — ou seja, é um ente querido. É evidente que nos parece ser óbvio que uma coisa que não é devidamente cuidada pode trazer-nos problemas. Um ente, ou o que é o mesmo, uma coisa com problemas pode afectar, por exemplo, a compreensão ontológica do Dasein sobre si mesmo. Para Heidegger, a condição ôntica, que é própria da coisa, acaba por ser a condição ontológica do Ser-Aqui — porque um ente inexistente é uma contradição em termos.

“O Ser-Aqui é sempre a sua possibilidade”, escreve Heidegger; mas a natureza ontológica da possibilidade do Ser-Aqui depende da condição ôntica da coisa. A filosofia de Heidegger fundamenta-se na oposição entre a natureza ôntica da coisa, por um lado, e, por outro lado, a natureza ontológica do Ser-Aqui: se a coisa, enquanto ente, é limitada, o Ser-Aqui já é indeterminado. Ou seja: uma boa condição ôntica da coisa é fundamental para a determinação ontológica do Ser-Aqui.

Sábado, 16 Fevereiro 2013

Heidegger é um exemplo acabado do gnosticismo moderno

Filed under: gnosticismo,religiões políticas,Ut Edita — O. Braga @ 9:12 am
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« Em filosofia, tornar-se inteligível é um suicídio » — Martin Heidegger (“vom Ereignis”)

Uma das principais características dos gnósticos da antiguidade tardia era o seu (deles) orgulho na sua ininteligibilidade do discurso. Para eles, a ininteligibilidade identificava-se com o esotérico e com a capacidade exclusiva do acesso à verdade por parte da classe dos Pneumáticos, em detrimento da classe dos Hílicos, para quem o acesso à compreensão do discurso gnóstico da verdade estava vedado, e por isso, os Hílicos estariam privados da “salvação”. Este mesmo princípio da ininteligibilidade — do “segredo” — de uma plêiade de iluminados esteve sempre presente, também, na maçonaria. (more…)

Domingo, 10 Fevereiro 2013

O “não-ser”, ou pensar a minha não-existência

Filed under: A vida custa,filosofia,Ut Edita — O. Braga @ 9:28 am
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No livro de Sofia Reimão (ver nota em rodapé), refere-se amiúde o conceito de “pensar a minha não-existência perante a morte”, ou pensar o “não-ser” — no seguimento daquilo a que alguns chamam de “filosofia” existencialista e/ou descontrucionista de Heidegger et al.
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Sexta-feira, 7 Setembro 2012

A demitificação e desmistificação de Heidegger

Heidegger foi tudo menos original.
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Sexta-feira, 10 Junho 2011

A “Introdução à Merdafísica”, de Heidegger

“Todos os entes se equivalem. Qualquer elefante numa selva qualquer da Índia é tão ente como qualquer processo de combustão química no planeta Marte, ou qualquer outra coisa.”

— Martin Heidegger, “Introdução à Metafísica”

Não sei bem há quantos anos tento ler a “Introdução à Metafísica” de Heidegger. Quando chego à página 12 e me deparo com esta proposição, fecho o livro e espero pela próxima tentativa de leitura do livro, que poderá chegar daqui a um par de anos, ou mais.

De vez em quando, quando estou à procura de um outro livro, deparo-me com a lombada da Metafísica, ali, solitário por entre a multidão de outros livros. E digo para com os meus botões: “é desta que o vou ler até ao fim”. Pego nele e recomeço a sua leitura, mas quando chego à página 12, como que por reflexo condicionado, paf!, fecho o livro e volto a colocá-lo na estante.

O título do livro está errado. Não deveria ser “Introdução à Metafísica”, mas antes “Introdução à Merdafísica”.
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Quinta-feira, 29 Julho 2010

A “coisa-em-si” e a coisicidade do coiso das coisas

Um dos grandes mistérios da filosofia iluminista, é o conceito kantiano de “coisa-em-si”. Depois de tantas interpretações sobre a “coisa-em-si” de Kant (salvo seja), já não faz mal que eu venha agora com mais uma.
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Domingo, 25 Julho 2010

O epifenomenalismo de Ortega y Gasset

« O espiritual não é menos vida que o não-espiritual. » — Ortega y Gasset

Num primeiro momento, Ortega y Gasset considera o pensamento como uma excrescência vital e biológica, ou seja, para ele o cérebro produz o pensamento da mesma forma que o intestino produz os excrementos — segue o princípio do epifenomenalismo de Thomas Huxley. Ortega y Gasset reduz o pensamento de um qualquer ser humano ao estatuto de um peido.
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Quinta-feira, 8 Julho 2010

Simon Blackburn acerca de Heidegger

Filed under: filosofia — O. Braga @ 3:01 pm
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Se você gosta da filosofia de Heidegger, aconselho a leitura deste ensaio (PDF) de Simon Blackburn. Se você não gosta dele, talvez não valha a pena lê-lo; e se Heidegger é para si uma espécie de ódio de estimação, então a leitura é obrigatória. Enfim, se você não faz a mínima ideia de quem é o tal Heidegger, nem faz ideia da inveja que eu tenho em não estar no seu lugar…

Fazendo uma analogia com a pintura, podemos dizer que a filosofia de Heidegger é uma espécie tela de arte abstracta modernista: a sua interpretação é sempre subjectiva, e o pintor nunca é manchado pela crítica. Este pode até evacuar na tela que os apreciadores e connaisseurs irão mesmo apreciar o cheirinho a merda…

Terça-feira, 22 Junho 2010

A evolução do gnosticismo até à sua expressão moderna (11)

Num postal sobre José Saramago, alguém colocou o seguinte comentário:

« A um homem “normal” (O. Braga) não é possível compreender um Homem Extraordinário! [José Saramago] Por isso escreve, ele sim com ódio, o que escreve. Mas O. Braga é “normal”. Por isso não é de espantar. »

A ideia do comentarista é esta: o ódio de Saramago em relação à ordem cósmica e à estrutura fundamental da realidade, é positiva porque ele é um “homem extraordinário” — um super-homem e um exemplo de um Aeon gnóstico moderno. Eu, que critico o gnosticismo de Saramago, é que tenho ódio porque sou um Hílico moderno, ou seja, um “normal”. Segundo o gnosticismo moderno — e em analogia com o gnosticismo antigo —, os “normais” nunca conseguirão a “salvação”.
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