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Terça-feira, 16 Maio 2023

O método indutivo-dedutivo aristotélico aplicado à ética

Filed under: ética,Ciência — O. Braga @ 7:27 pm
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Este texto de Michael Sandel, publicado pela professora Helena Serrão (ler aqui em PDF), foi (aparentemente) impresso em Portugal pela Editora Presença, de Lisboa; mas está escrito em língua brasileira; e isto preocupa-me: por exemplo, em português escreve-se “facto”, e não “fato”; e por aí fora…

Pelo facto de a Editora Presença publicar, em Portugal, livros em língua brasileira sem qualquer aviso ao comprador, deveria ser objecto de uma indemnização legal ao consumidor.


Michael Sandel faz parte de uma corrente filosófica a que se convencionou chamar de “comunitaristas”, que se opõe aos libertários (individualismo radical). Da corrente dos “comunitaristas” fazem parte, também e por exemplo, Michael Walzer, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor.

O texto de Sandel é muito interessante porque aplica, à reflexão ética, o método indutivo-dedutivo científico de Aristóteles, que encarou a investigação científica como uma progressão a partir das observações até aos princípios gerais, e destes, de novo, de volta até às observações — Aristóteles sustentou que o cientista deveria induzir princípios interpretativos a partir dos fenómenos a interpretar, e, a seguir, deduzir afirmações (proposições) sobre os fenómenos a partir de premissas que incluam estes princípios.

Observação → indução → princípios interpretativos → dedução → de volta à observação

Este modelo aristotélico foi posteriormente adoptado por Roger Bacon (não confundir com Francis Bacon), e ainda hoje é válido até certo ponto.

Na segunda parte do texto, Sandel adopta o criticismo kantiano (Kant, Karl Popper) que exige discussão pública das teorias subjectivas e individuais (tanto em ciência, como na ética).

Sexta-feira, 31 Março 2023

Isabel Moreira diz que o assassinato de duas mulheres foi um “pequeno incidente”

Onarcisismo exacerbado — ou a transformação do narcisista em um substitutivo de Deus — conduz inexoravelmente à inversão de valores que submete a humanidade inteira ao nosso desejo discricionário.
Em um quadro de um excessivo narcisismo, a fronteira conceptual entre o narcisista e o Outro torna-se de tal forma desfocada que o primeiro fica bloqueado na sua própria imagem, obnubilando a imagem do Outro.
O narcisismo exacerbado sobrevive em prejuízo (à custa) da empatia, e transforma a desumanização do Outro em uma “empatia invertida” que deriva de uma ética invertida pela mirada no espelho do narcisista.

isabelMoreiraPequenoIncidenteweb

É assim que, para a narcisista incontinente Isabel Moreira (antinatural, felizmente), a morte de duas mulheres assassinadas é um “pequeno incidente”, por um lado, e o assassino dessas duas mulheres é um “pobre refugiado”, por outro lado.

Há aqui uma metafísica invertida, própria de uma narcisista descomunal.

Na sua ânsia de impôr (ou de fazer prevalecer) a sua mundividência idiossincrática em relação à realidade em si mesma (“a realidade é aquilo que eu quero que ela seja”), assumindo a função de Deus que tem o poder de transformar o mundo à sua própria imagem, no narcisista exacerbado revela-se o psicopata — ou em casos mais benignos, um sociopata.

Em todas as épocas existiu um qualquer “politicamente correcto” (por exemplo, no tempo de Salazar também havia um certo “politicamente correcto”); mas o actual politicamente correcto tem a característica única da inversão dos valores éticos (profetizada por Nietzsche) que parte da posição ontológica do Narciso face ao mundo, e em que impera a liberdade da indiferença e a garantia do acto gratuito como possibilidade absoluta de acção moral.

isabel-moreira-costa-os-homens-podem-engravidar-web.

Numa sociedade cada vez mais narcísica, a Isabel Moreira está nas suas sete quintas, e explora a seu bel-prazer o narcisismo grotesco e excessivo em circulação na sociedade — a sociedade das cirurgias plásticas em barda, a sociedade dos esteróides e dos coquetéis de proteínas que submetem os corpos à tirania da superficialidade, a sociedade das “selfies” que marcam o comportamento social padronizado, e, sobretudo, a sociedade da inversão nietzscheana dos valores que convence o ser humano de que é o próprio Deus.

Este é o Partido Socialista actual: o partido controlado pela narcisista Isabel Moreira.


Adenda:
Tive a informação, pelo próprio jornal Público, de que esta notícia é falsa, ou seja, trata-se de uma montagem de uma falsa notícia do jornal Público. No entanto mantenho a minha crítica ao narcisismo exacerbado e sociopata da Isabel Moreira.

Terça-feira, 21 Fevereiro 2023

Domingos Faria e a Isabel Moreira: les bons esprits se rencontrent…

Uma certa casta de “iluminados” — que inclui a Isabel Moreira — lançaram uma Fatwa à “moral sexual” da Igreja Católica que, segundo ela, é a causa da pedofilia na Igreja Católica.


Há um livro com o título “Goodbye, Good Men: How Liberals Brought Corruption into the Catholic Church”, do autor Michael S. Rose, que não foi publicado em Portugal porque vai contra a narrativa da Esquerda protagonizada pelas editoras como a Gradiva (por exemplo), por um lado, e, por outro lado, porque é interpretada fielmente por “liberais” e radicais de esquerda como o Domingos Faria e a Isabel Moreira, que controlam os me®dia — o mesmo Domingos Faria que escreveu que o aborto e a eutanásia são perfeitamente compagináveis com a ética da Igreja Católica, e que seria mesmo normal e positivo que os sacerdotes católicos pregassem a sodomia, o aborto e a eutanásia do alto do púlpito.


politicamente-correcto-grc3a1fico-webO problema, aqui, é o de gente (como a Isabel Moreira e o Domingos Faria) que acredita que a Natureza Humana pode ser mudada através de legislação — porque, como bons progressistas, a culpa é sempre dos outros, ou da sociedade.

Porém, mais grave: acreditam que a aplicação da lei é um caminho ou um meio para o gradual aperfeiçoamento (prometaico) da humanidade (para se atingir a perfeição do colectivo humano).

O problema da Isabel Moreira e do Domingos Faria não é apenas um anti-catolicismo primário: eles acreditam mesmo que a Natureza Humana poder ser mudada; mas quando vemos a reacção da população autóctone aos recentes sismos na Turquia, por exemplo, compreendemos que a reacção humana aos fenómenos da Natureza não mudou uma vírgula desde que apareceu o primeiro homo sapiens.

A Natureza Humana é imutável, no sentido em que não há leis humanas que a mudem.

E quem pensa o contrario disso padece de um delírio interpretativo (a Isabel Moreira é um caso patológico de interpretação delirante).

O caso de Domingos Faria é mais grave (do que o da Isabel Moreira), porque ele tem formação em filosofia, por um lado, e por outro lado porque as suas teses abstrusas são oficialmente reconhecidas por uma universidade de Lisboa.

Reparem na minha seguinte proposição hipotética:

“Eu sou um genuíno militante do partido IL (Iniciativa Liberal), mas não me identifico com a actual ética política propugnada pelo partido IL (Iniciativa Liberal)”.

Agora vejamos a seguinte proposição do Domingos Faria:

“Há um número bem significativo de pessoas genuinamente católicas que não se identifica com a actual ética sexual da Igreja Católica”.

É assim que o Domingos Faria inicia a sua logomaquia. E ¿é isto um “doutorado em filosofia”?! Estamos f*didos!

¿Como é que eu posso ser um “genuíno” militante de um partido se eu não me identifico com o ideário fundamental desse partido?!

Posso ser oposição interna a esse partido; mas se a oposição interna colocar em causa os princípios fundamentais e basilares desse partido, então deixa de ser uma oposição interna para passar a ser uma forma de pressão para transformar esse partido em outra coisa completamente diferente do que é hoje.


Uma coisa devemos afirmar peremptoriamente ao Domingos Faria, para que ele entenda, sem sofismas:

Meter um pau no ânus, para alegada satisfação própria, é um acto sexual intrinsecamente desordenado; não é preciso ser católico para entender isto.

Ora, ele diz que os católicos são contra o acto sexual de meter um pau no ânus — o que é uma falácia. Todas as religiões, incluindo o Budismo e/ou as religiões animistas africanas, e mesmo muitos ateus, não concordam com o acto sexual de meter um pau no ânus — até porque está cientificamente provado de que é prejudicial à saúde.

Escreve, o animal:

“A actual ética sexual da Igreja Católica está assente no seguinte princípio central: um acto é moralmente lícito se com esse acto se pretende ou se visa realizar os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos (ditados por Deus).”

O que o Domingos Faria faz, ali, é misturar o conceito de “acto sexual do casal (natural) que tem por fim o acasalamento mas não a fertilização necessária para a procriação”, por um lado, com o conceito de “meter o pau no ânus”, por outro lado — ou seja, o Domingos Faria pretende que os actos sexuais do casal (homem + mulher) que não tenham por fim a reprodução, sejam equiparados eticamente aos actos de “meter o pau no ânus” de um par de gays.

Para o Domingos Faria, o Coitus Interruptus, praticado eventualmente por um casal católico com 5 filhos, é moralmente equivalente a um acto masturbatório praticado em uma suruba gay.

Ora, o Domingos Faria deveria ler Santo Agostinho, por um lado, e S. Tomás de Aquino, por outro lado. S. Tomás de Aquino defendeu o princípio da “autorização divina” de actos sexuais não reprodutivos em casais com filhos.

Santo Agostinho não condenou as práticas sexuais (no âmbito de um casal católico com filhos) que não tenham por fim exclusivista a reprodução; mais: Santo Agostinho defendeu que, em determinados casos, o divórcio é justificado eticamente — esta corrente agostiniana e tomista foi parcialmente alterada pela contra-reforma católica que nada mais fez, basicamente, do que adoptar parcialmente a moral protestante e burguesa de Lutero.

É falso que a moral católica esteja assente no princípio segundo o qual “um acto é moralmente lícito só se com esse acto se pretende ou se visa realizar os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos”.

Aliás, no catecismo da Igreja Católica, no seu artigo 2370, está escrito:

“(…) os métodos de regulação da natalidade baseados na auto-observação e no recurso aos períodos infecundos estão de acordo com os critérios objectivos da moralidade.”

É isto que repugna o Domingos Faria: meter um pau no cu de um gay é, para o Domingos Faria, tão belo eticamente como uma cópula interrompida em um casal filhento.

Portanto, o Domingos Faria mente quando diz que, na moral católica, “um acto é moralmente lícito só se com esse acto se pretende ou se visa realizar os propósitos naturais ou biológicos dos órgãos”. O animal mente. Mas é douto em filosofia, embora não tenha lido Santo Agostinho. E o Observador estende-lhe o tapete vermelho.

O que o catecismo faz é tornar moralmente ilícito o uso da pílula contraceptiva, por exemplo — aliás, já se comprovou cientificamente que a pílula prejudica a saúde da mulher.

Tudo o que seja a banalização do acto sexual é condenado pela Igreja Católica — e é isto que repugna o Domingos Faria: meter um pau no cu de um gay é, para o Domingos Faria, tão belo eticamente como uma cópula interrompida em um casal filhento.


Portanto, o postulado da tese do Domingos Faria é falso; e, como como defendeu Aristóteles, se um princípio é falso, toda a teoria que parte desse princípio é igualmente falsa.

Finalmente, é ignóbil que se estabeleça uma equivalência entre os actos sexuais entre insectos ou entre peixes, ou entre bonobos, por exemplo e por um lado, e o acto sexual entre seres humanos, por outro lado.

Este tipo de comparação ou equivalência (próprias da sociobiologia liberal) incorre em um sofisma naturalista [não é possível deduzir valores e normas a partir de factos! Porra! (George Edward Moore)] — porque a situação da natureza não pode ser transposta, sem reservas, para o mundo dos seres humanos: é preciso fornecer uma fundamentação para as normas, o que a ciência não pode fazer.

Portanto, os factos não fundamentam quaisquer normas, embora as normas possam criar factos.

Terça-feira, 24 Maio 2022

Theodore Dalrymple e o conceito de "Maoísmo Emocional"

Um recente ensaio de Theodore Dalrymple fala-nos da “cultura da emoção” — a que ele chama de "Maoísmo Emocional":

“The modern taste for emotional exposure partakes of two seemingly disparate currents: First, the kind of psychotherapy according to which all contents of the mind must be outwardly expressed for fear of turning inwards and causing a mental abscess of unexpressed thoughts and emotions that eventually bursts. Second, it reflects a kind of emotional Maoism, according to which people have the social duty to confess their emotions to the multitudes”.

non binary human webPorém, não é possível falar em "Maoísmo Emocional" sem procurar (sumariamente) as suas causas culturais (em uma espécie de “epistemologia da cultura ocidental”) com raízes na Alta Idade Média católica, nomeadamente em Pedro Abelardo (que, para o efeito, “retorceu” algumas teses de Santo Agostinho) e na sua “ética da intencionalidade”: segundo Abelardo, apenas a intenção moral é susceptível de qualificação, qualquer que seja o acto exterior.

Hiperbolizando: por exemplo, eu mato o meu vizinho e depois digo que o acto hediondo foi justificado por uma boa intenção que consistia em salvá-lo das garras da tirania da sua (dele) esposa. Ou o assassino pós-moderno que diz ao juiz: “Eu não tenho culpa, senhor dr. juiz, porque não tive intenção: a culpa é dos meus genes!”.

O “acto exterior” — segundo Pedro Abelardo —, sendo sempre moralmente indiferente, é bom ou mau apenas em função da intenção alegada pelo agente que o pratica [pro intentionis agentis]; e, por isso, nenhuma acção humana — nem mesmo a crucificação de Jesus Cristo — pode ser classificada (a priori) como “má”, “não sendo importante o que se faz, mas o espírito no qual se faz” [Dialogus].

Por outro lado, Pedro Abelardo invoca o mesmo argumento de São Bernardo de Claraval segundo o qual pode acontecer que façamos o que Deus quer sem que a nossa intenção seja a de cumprir a vontade divina [a chamada casuística”, que foi adoptada nomeadamente pelos jesuítas na Contra-Reforma, justifica um crime pelo motivo (intenção) segundo o qual se cometeu, por um lado, e por outro lado atribuiu à Providência Divina o propósito (ou a vontade) de uma determinada má acção humana (São Bernardo de Claraval)].

Quando (alegadamente, segundo São Bernardo de Claraval, Pedro Abelardo e os jesuítas, ou seja, os iluminados que conhecem antecipadamente as intenções de Deus) Deus ordena as nossas acções (mesmo contra a nossa vontade), pode acontecer que não agimos bem ainda que se realizem coisas boas segundo a vontade divina.

Este conceito (a casuística) dá muito jeito a psicopatas como o papa Chico. Aliás, praticamente toda a ética do papa Chico é baseada na casuística e no intencionalismo (doutrina da indiferença dos actos externos) de Pedro Abelardo.

De acordo com a “doutrina da indiferença dos actos externos” (de Pedro Abelardo), por mais que o ser humano faça o que Deus quer que ele faça, somente a boa intenção (que é subjectiva, por definição) torna a acção “boa” [está aqui a génese teorética, que se baseia em passagens bíblicas retiradas de contexto, do conceito de sola fide dos protestantes].

Para Pedro Abelardo e segundo a sua doutrina da indiferença dos actos externos (intencionalismo), a necessidade do desejo natural exclui a noção de “pecado”: por exemplo, (hiperbolizando) se um homem sente necessidade e um desejo natural de ter relações sexuais com um cavalo, o prazer natural que ele sentir é inocente desde que ele racionalmente não consinta [Ethica] — temos aqui a justificação do papa Chico para as relações sexuais homossexuais, invocando uma suposta  “necessidade natural”.

O intencionalismo (de Pedro Abelardo, mas não só) tem como base um cepticismo em relação ao conhecimento objectivo da ordem moral, o que, em compensação, dá lugar a uma (pretensa) autenticidade e uma (suposta) sinceridade do acto da vontade humana (subjectivismo).

O intencionalismo subjectivista esteve na base do Romantismo que surgiu na Idade Clássica e se prolongou pela Idade Moderna, e que atingiu a sua expressão mais absurda com o pós-modernismo.

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Finalmente: outra origem cultural do "Maoísmo Emocional" pós-moderno é o da tradição da confissão pública católica durante a Alta Idade Média: no fim da missa católica medieval, os fiéis católicos confessavam publicamente (alta voz e em bom som) os seus pecados aos outros membros da sua comunidade; ou seja, a confissão dos pecados era pública. Só a partir do século XVI e com a Contra-Reforma, a confissão católica passou a ser privada e secreta, com a utilização dos confessionários individuais.

Porém, a tradição católica da “confissão pública” foi retomada pelo Romantismo dos séculos XVIII e XIX (embora já despojada das vestes culturais da religião cristã) com o conceito político de “auto-crítica” pública que foi bastamente aplicada (nomeadamente) pelos regimes marxistas da modernidade.

Terça-feira, 15 Março 2022

S. Tomás de Aquino e o problema do Belo e do Bem

Filed under: ética,S. Tomás de Aquino — O. Braga @ 7:38 pm
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Aquando do referendo acerca da legalização do aborto a pedido (1997), um militante (de base, de Viana do Castelo) do Bloco de Esquerda argumentou que “o aborto é um acto de amor”; para ele, o aborto encerra ou revela uma certa beleza. Foi então que eu compreendi a enorme complexidade da estética, do gosto e da ética. (more…)

Quarta-feira, 16 Fevereiro 2022

O relativismo é a negação da ciência e do método científico

Filed under: ética,Moral — O. Braga @ 8:00 pm
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Este texto é um exemplo daquilo a que o utilitarista neozelandês Nicholas Agar chama de “shit-stirring” (“mexer na merda”): é o triunfo de um estilo filosófico que dá prioridade à provocação, em vez da abordagem da substância moral propriamente dita — trata-se de uma crítica de um utilitarista (Nicholas Agar) em relação aos utilitaristas que, em geral, não debatem em boa-fé.

O texto (ler em PDF) é uma manifestação utilitarista, que emula as teses relativistas dos sofistas, em geral, e de Protágoras, em particular: “O homem é a medida de todas as coisas”. Eu, que pensava que Aristóteles já tinha tratado deste problema, fico surpreso pelo facto de a professora Helena Serrão tornar a levantá-lo, mais de dois mil anos depois.

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Aristóteles chegou à seguinte conclusão:

Se “o Homem é a medida de todas as coisas”, então segue-se que, tudo o que parece, é verdadeiro; e igualmente verdadeiro. E as afirmações contraditórias são verdadeiras ao um mesmo tempo ― porque se “tudo é relativo” e a verdade depende exclusivamente do ponto de vista do observador (como defendiam Protágoras e os sofistas), então as afirmações de toda a gente são verdadeiras, mesmo que contraditórias. Neste sentido, segundo Protágoras, é legítimo ― porque implícita ou explicitamente verdadeiro ― que seja afirmado, a um mesmo tempo, que uma coisa é e não é.

Assim, Aristóteles conclui que o relativismo moral nega o princípio de identidade ( A=A), porque permite que, simultaneamente, uma coisa seja e não seja (seja verdadeira e falsa), em um mesmo momento. Para o relativismo moral, e segundo Aristóteles, o exercício do contraditório não serve para a procura epistemológica (episteme) da verdade senão para a constatação de que a verdade depende exclusivamente da opinião de cada um (doxa); e se as opiniões são contraditórias, para os sofistas elas não podem deixar de ser todas verdadeiras; e se todas são verdadeiras, nega-se o princípio de identidade segundo o qual “é impossível que uma coisa seja e não seja, a um mesmo tempo”.

Quando os sofistas dizem que nenhum Homem tem a verdade absoluta, Aristóteles responde dizendo que mesmo que fosse possível que todas as coisas pudessem ser e não ser simultaneamente, nunca seria possível retirar, à natureza dos seres, o mais e o menos (o maior e o menor).

« Nunca se poderá sustentar que dois e três são, de igual modo, números pares. E aquele que pense que quatro e cinco são a mesma coisa, não terá um pensamento falso de grau igual ao daquele que defendesse a ideia de que quatro e mil são idênticos.

Se existe diferença na falsidade, é evidente que o primeiro pensa uma coisa menos falsa. Por conseguinte, está mais próximo ao que é verdadeiro. Logo, se o que é mais uma coisa é o que se aproxima mais dela, deve haver algo verdadeiro, do qual será o mais verdadeiro mais próximo.

E se este verdadeiro [absoluto] não existisse, pelo menos existem coisas mais certas e mais próximas da verdade que outras (…) »

― “Metafísica”, 4 ― IV (tradução livre da edição em língua inglesa)

Portanto, mesmo que a verdade absoluta não existisse (como defendem os sofistas), Aristóteles demonstrou assim que existem coisas mais verdadeiras do que outras, ou que o grau de falsidade não é sempre o mesmo. Se existem coisas mais verdadeiras do que outras, todas as coisas não podem ser igualmente verdadeiras. Se todas as coisas não podem ser igualmente verdadeiras, o Homem não pode ser a medida de todas as coisas.


Ora, o que faz falta, ao tal “filósofo da treta” Stéphane Ferret, é ler Aristóteles.

E faz falta que a professora Helena Serrão recomende a leitura de Aristóteles aos seus alunos. O texto referido parte (implicitamente) de um princípio errado (a negação do princípio de identidade), e por isso todo o “raciocínio” nele contido está errado; e depois, o texto chega à conclusão de que o relativismo ético e/ou moral não impõe (à sociedade) uma universalidade (moral) — o que é uma falácia de todo o tamanho: a negação de uma metafísica é sempre uma forma de metafísica. Uma moral relativista é sempre tendencialmente universal, mesmo quando defende o contrário.

Quarta-feira, 19 Janeiro 2022

António Costa é um político muito perigoso

“A liberdade não é uma coisa abstracta, depende das condições de cada um.” → António Costa

Respigado aqui.


Esta noção de “liberdade” é extremamente nociva à própria liberdade, por várias razões.

monhe-das-cobras-webEm primeiro lugar — e como o autor escreveu —, o António Costa reduz a liberdade ao condicionalismo financeiro do indivíduo, o que é uma visão utilitarista de liberdade e do ser humano; e esta visão utilitarista do ser humano não é de origem marxista (vem do inglês Bentham): Karl Marx foi um acérrimo e feroz crítico do Utilitarismo, a que chamou de “moral de merceeiro inglês”.

Em segundo lugar (e mais grave do que a concepção utilitarista do ser humano e da liberdade), a noção de “liberdade”, segundo António Costa, encerra em si mesma uma ideia determinista (ver “determinismo”) da acção humana, em que o livre-arbítrio desaparece para dar lugar a um puro e duro nexo causal no comportamento humano: aqui, sim, há uma influência directa do materialismo dialéctico marxista no pensamento de António Costa — o ser humano é considerado como uma espécie de robô que apenas responde a estímulos cerebrais e materiais.

A Esquerda actual, junta de uma forma sincrética e em uma mesma doutrina existencial, o Utilitarismo (da escola escocesa, por um lado, e do Pragmatismo americano, por outro lado) e o Determinismo (pseudo-científico ou cientismo do século XIX, por um lado, e o materialismo dialéctico marxista, por outro lado), no que diz respeito à concepção ética e moral do ser humano — como podemos verificar, por exemplo, em um dos paladinos da actual Esquerda, que é o australiano Peter Singer (nem a Hannah Arendt escapou ao ardil do materialismo comportamental!).

Ou seja, para António Costa, “o ser humano é livre porque age” — tal qual acontece com um animal irracional.

Em contraponto, e até ao Idealismo de Hegel (Kant defendeu a possibilidade de livre-arbítrio do ser humano, ao separar a “razão pura” e a “razão prática”, e diferencia-se assim radicalmente de Hegel), e desde os pré-socráticos, os filósofos diziam que “o ser humano age porque é livre” — a liberdade, até Hegel, era a condição da acção: os gregos antigos não falavam de “liberdade” porque ela estava implícita no conceito de cidadania — assim como os cristãos da Idade Média não falavam em “religião” (cristã) porque o Cristianismo fazia parte integrante da própria Realidade colectiva e dos indivíduos.

A partir da dialéctica de Hegel e do materialismo dialéctico de Karl Marx, a acção passou a ser a condição da liberdade: com estes dois “filósofos”, aconteceu uma total inversão de parâmetros e de valores.

Karl Popper fez uma crítica demolidora ao determinismo comportamental no ser humano (a chamada Teoria da Identidade, ou Fisicalismo), chamando à atenção para o facto de esta teoria (a Teoria da Identidade) não poder ter qualquer sentido se obedecer aos seus próprios pressupostos.

Se as minhas ideias são produtos ou efeitos da química que se processa na minha cabeça, então nem sequer é possível discutir a neurociência ou a liberdade do António Costa: a teoria da identidade não pode ter qualquer pretensão de verdade, visto que as alegadas “provas”  apresentadas pela neurociência são também também química pura: se alguém defende uma teoria contrária ou oposta ao Fisicalismo, esse alguém também tem razão, dado que a sua química apenas chegou a um resultado diferente. Karl Popper chamou a esta armadilha lógica de “pesadelo do determinismo físico”.

Porém, o mais grave na noção de “liberdade” de António Costa é que ele implicitamente nega a ideia de “liberdade política” que, em juízo universal, é independente das características particulares de cada indivíduo e da necessidade 

(liberdade política ≠ necessidade)

— a não ser que o ser humano seja considerado uma espécie de escravo, o que me parece ser a ideia que António Costa tem do cidadão comum.

A noção de “liberdade” de António Costa coincide simultaneamente com a ideia de “liberdade” que é proveniente da plutocracia globalista (o Utilitarismo e o Pragmatismo), e com a ideia de “liberdade” característica dos materialistas e/ou cientificistas, e/ou do materialismo dialéctico dos marxistas.


António Costa é um político muito perigoso. Esta concepção de “liberdade” nunca seria perfilhada por Mário Soares ou por Manuel Alegre, por exemplo. Com António Costa, o Partido Socialista sofreu uma evidente e clara involução para um radicalismo trauliteiro de Esquerda.

Domingo, 5 Setembro 2021

O Anselmo Borges, o Queiruga, e a galinha que nasceu primeiro que o ovo

Filed under: Anselmo Borges,ética,filosofia,Igreja Católica,religião — O. Braga @ 1:33 pm

1/ A propósito deste texto (ler em PDF) do “padre” Anselmo Borges: discordo totalmente do seu ponto 2., por exemplo.

“Assim, como escreve A. Torres Queiruga, na estrutura íntima do processo religioso "não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum"”

Ou seja, o Anselmo (e o Queiruga) têm a certeza de que “quem nasceu primeiro foi a galinha, e não o ovo”.


Depois, o Anselmo implica (ou defende) a absolutização da subjectividade no processo de interpretação do mundo: se vês o mundo de uma forma ou de outra, deve-se exclusivamente à interpretação que fazes dele, e que pode ser diferente da interpretação do teu vizinho.

(pergunto-me muitas vezes como é que este indivíduo é professor universitário de filosofia)

Há limites para o Construtivismo (a construção do mundo por nós, enquanto indivíduos); e o principais limites são o da intersubjectividade, por um lado, e o pensamento lógico, por outro lado.

Ou seja, a “realidade para nós” (a realidade construída por nós, indivíduos) tem os limites impostos pela intersubjectividade (ou, mutatis mutandis, “objectividade”) e pelos axiomas da lógica (que não são físicos). A “realidade para nós” (a subjectividade) não é (metaforicamente) uma auto-estrada sem limite de velocidade — a não ser no mundo louco dos esquerdistas (e gnósticos) como o do Anselmo Borges.

Cada indivíduo vive a sua vida a partir de uma determinada cosmovisão que nunca é resultado de uma reflexão racional.

Através da citação supra, o Anselmo Borges (e o Queiruga) eliminam o conceito de “interpretação pré-racional” — que é aquela que existe antes de o indivíduo pensar/reflectir que “a interpretação racional que tem do mundo, é a melhor”.

A “interpretação pré-racional” é uma hipótese de fundo não-reflectida (não racionalizada) sobre o sentido da vida e sobre o valor das coisas: cada indivíduo vive a partir de uma determinada cosmovisão que nunca é resultado de uma reflexão racional.

Se alguém vive a sua vida segundo a ideia de que a vida não obedece a nenhum valor superior, ou quando alguém goza a vida sem quaisquer limitações físicas e/ou éticas, ou assume que a vida não tem qualquer sentido, ou de que tudo depende do ponto de vista que se assume — então esse alguém também já fez uma interpretação pré-racional da existência.

Neste sentido, é mais verdadeiro que se diga que “interpretamos o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu”, do que dizer que “é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo”.

Ou seja, é mais verdadeiro (baseados na experiência) defender o oposto do que é defendido pelo Anselmo Borges.


2/ Estou parcialmente de acordo com o ponto 1. do texto do dito “padre”: a Igreja Católica deveria abster-se, dentro do possível, de citar as cartas deuteropaulinas — como é o caso da Carta de S. Paulo aos Efésios.

As chamadas epístolas “deuteropaulinasnão foram escritas por S. Paulo, a ver:

Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses, 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito.

As que não fazem parte desta lista foram mesmo escritas por S. Paulo. Porém, mesmo nas que se demonstrou terem sido escritas por S. Paulo, existem as chamadas “interpolações”, como por exemplo em 1 COR 14, 34-35 — ou seja, esta passagem de Coríntios 1 não é de S. Paulo.

As “interpolações” têm origem em notas marginais que os monges escribas, mais tarde e já na Alta Idade Média, incorporaram no próprio texto, inserindo-as em alguns casos em um determinado lugar, e noutros casos, noutro lugar.

Sábado, 5 Junho 2021

Kant é essencial para salvar a ciência e a ética, em relação ao niilismo do pós-modernismo

Filed under: ética,Ciência,filosofia,Kant — O. Braga @ 12:32 pm
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O Ludwig Krippahl escreve aqui um texto que rebate (ou contradiz) a ideia segundo a qual

“a ética é uma palhaçada, porque, enquanto os objectos de estudo [da ciência] continuariam a existir quer existissem humanos ou não, os valores morais não existem sem sujeitos”.

Ora, o que o Ludwig Krippahl está a contraditar, são exactamente os princípios filosóficos que regeram o advento da modernidade — Francis Bacon, Hobbes (principalmente), e Descartes.

(more…)

Quinta-feira, 20 Maio 2021

A Esquerda (incluindo o actual Partido Comunista) é utilitarista

Filed under: ética,Moral,utilitarismo — O. Braga @ 5:26 pm
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“Se não se crê em Deus, o mais honesto é o Utilitarismo vulgar; e o resto é retórica.”

Nicolás Gómez Dávila


Alguns professores de filosofia (por exemplo, o Rolando Almeida) têm vindo a injectar nos nossos adolescentes a ideia da primazia do Utilitarismo, enquanto ética societária (ou seja, como moral adoptada pela sociedade).


O Utilitarismo é uma doutrina elaborada por Bentham, retomada e aprofundada por John Stuart Mill, segundo a qual a utilidade é o principal critério da actividade (da acção) do ponto de vista da ética e da moral.

Segundo o Utilitarismo, o objectivo da sociedade deve ser “o maior bem-estar do maior número”, ou seja, a soma dos prazeres de cada indivíduo.

O Utilitarismo faz da “utilidade” o único critério da moralidade: alegadamente, uma acção só é boa na medida em que contribui para o bem-estar do “maior número” de indivíduos; e quem não pertence ao “maior número”, está f*d*do!; ou então que se f*da!

O Utilitarismo diferencia-se do Pragmatismo apenas porque este não aceita a identificação do “útil”, por um lado, com o “verdadeiro”, por outro lado.


Porém, a doutrina utilitarista encontra-se condicionada por duas proposições antitéticas ou contraditórias entre si (no Bloco de Esquerda, por exemplo, esta contradição é gritante):

  • uma proposição positiva, que diz que os homens devem ser considerados como indivíduos egoístas, calculadores e racionais, e que tudo deve ser pensado e elaborado a partir do seu ponto de vista [Bloco de Esquerda, IL (Iniciativa Liberal];
  • e uma proposição normativa, que afirma que os interesses dos indivíduos, a começar pelo meu próprio, devem ser subordinados e mesmo sacrificados à felicidade geral ou felicidade do "maior número" [Bloco de Esquerda, Partido Comunista, IL (Iniciativa Liberal), Partido Social-democrata, Partido Socialista].

Ou seja: o utilitarismo (principalmente o bloquista, mas não só) mistura, em proporções infinitamente variáveis e dependente apenas da discricionariedade política das elites, uma axiomática do interesse e uma axiomática sacrificialista, que é simultaneamente um encantamento pelo egoísmo (a frase: “o corpo é meu!”, por exemplo, no que se refere ao putativo “direito” a matar nascituros) e uma apologia do altruísmo (“Venham daí os imigrantes de todo o mundo para a Europa!”), e tentativa de reconciliar um ponto de vista ferozmente individualista e uma vertente globalizada e holista.

Por enquanto, o CDS (sem  o Adolfo Mesquita Nunes) e o CHEGA são os dois partidos políticos que escapam ao Utilitarismo.


utilitarismo-webO Utilitarismo, aplicado à ética societária, é sinónimo directo e objectivo de degradação do nível médio de inteligência em circulação.

Só assim se explica, por exemplo, como gente com défice cognitivo — como é o caso vertente de Richard Dawkins — defenda a ideia segundo a qual os nascituros com Síndroma de Dawn devem ser abortados; e o “argumento” utilitarista (de Richard Dawkins, de Peter Singer ou do Rolando Almeida) é o seguinte: “se permitirmos que os nascituros com Síndroma de Dawn nasçam, o sofrimento existente no mundo não baixará de grau.”

Ou seja, segundo os utilitaristas, “eliminar o sofrimento” significa (literalmente) “eliminar o sofredor”.

E a justificação moral para o assassínio é feita ao abrigo da proposição normativa que afirma que «os interesses dos indivíduos, a começar pelo meu próprio, devem ser subordinados e mesmo sacrificados à felicidade geral ou do "maior número"».

Os utilitaristas são de opinião de que os seres humanos com Síndroma de Dawn não têm direito à vida. Eles justificam essa opinião com a situação real das crianças com Trissomia ― dizem eles que “é uma vida que não vale a pena”. Por outro lado, os utilitaristas dizem que é útil para a sociedade não ter encargos com pessoas com síndroma de Dawn.

Num primeiro momento, os utilitaristas incorrem em um “sofisma naturalista”, visto que não se pode tirar conclusões morais (a partir de) de um facto; e num segundo momento eles pressupõem um consenso acerca do valor e custos convenientes de uma vida humana ― consenso esse que não existe.

O utilitarista é intrinsecamente um atrasado mental, a quem permitimos que nascesse porque não somos utilitaristas.

Sábado, 13 Março 2021

A diferença entre o multiculturalismo, por um lado, e o interculturalismo, por outro lado

Filed under: ética,Karl Popper,multiculturalismo,Sociedade — O. Braga @ 8:32 pm
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As ideias de Karl Popper têm sido (em geral) adulteradas e manipuladas, não só (malevolamente) pela Esquerda declaradamente marxista, mas também idiota- e principalmente pelos chamados “liberais”.

Por exemplo: quando Karl Popper defendeu positivamente a convivência entre culturas diferenciadas — por exemplo, a convivência entre as diferentes culturas que se cruzaram no império austro-húngaro — que se reflectiam na cultura vivaz da cidade de Viena do princípio do século XX, Karl Popper não quis defender o multiculturalismo (como é, assim, alegado pelos ditos “liberais”); e isto porque a convivência entre culturas diferentes do império austro-húngaro foi sinónimo de uma claríssima superioridade social da cultura e língua de origem alemã — de tal forma que, ainda hoje, a língua alemã é correntemente falada na Hungria.

Ou seja:

  • no império austro-húngaro, “todas as culturas eram iguais”, embora uma delas (a cultura austríaca de origem alemã) fosse “menos igual do que todas as outras”; a predominância cultural, social e civilizacional da cultura de língua alemã era por demais evidente no império austro-húngaro;
  • o multiculturalismo é o igualitarismo cultural, ou seja, a defesa do acantonamento e do isolacionismo das diversas culturas presentes em um determinado espaço político. O multiculturalismo é a antítese do fenómeno social de convivência intercultural que se verificou no império austro-húngaro.

O que se verificou no império austro-húngaro foi um interculturalismo, e não um multiculturalismo.

No interculturalismo, está sempre subjacente uma hierarquia de valores que se reflecte na predominância (comummente aceite pelos intervenientes de todas as culturas em presença) de uma certa cultura em relação às outras, com as quais convive livremente.

No multiculturalismo, as diversas culturas em presença em um mesmo espaço político, acantonam-se e isolam-se, em nome de uma putativa “igualdade” entre elas. Ora, isto (o multiculturalismo) é exactamente o oposto do que defendeu Karl Popper.


karl popperO conceito de “etnocentrismo” — de que nos fala aqui a professora Helena Serrão, citando um relativista ideológico de seu nome Augusto Mesquitela Lima — aplica-se perfeitamente a uma sociedade multiculturalista, embora no sentido negativo (porque existe um etnocentrismo positivo, que é o que promove activamente a coesão do Todo social em uma sociedade étnica- e culturalmente homogénea).

Em uma sociedade dita “multiculturalista” (que não é a mesma coisa que “sociedade multicultural” ou “interculturalista”), existe um etnocentrismo negativo acantonado em cada uma das culturas antropológicas existentes e igualitariamente consideradas em um mesmo espaço político (por exemplo naquilo a que o presidente francês Emmanuel Macron, mas também e agora a Marine Le Pen, chamam de “separatismo islâmico” em França) .

Em suma, existe uma contradição fundamental no texto do tal Augusto Mesquitela Lima citado pela professora Helena Serrão, que consiste em afirmar, por um lado, uma crítica ao etnocentrismo, e, por outro lado, a defesa do relativismo igualitarista inerente ao multiculturalismo — porque uma das características do multiculturalismo é precisamente o exacerbar do etnocentrismo enquanto recusa de incorporação de uma das culturas no Todo social e político.

Numa sociedade interculturalista (por exemplo, a do império austro-húngaro), não existe o relativismo cultural defendido pelo Mesquitela, na medida em que existe uma hierarquia nas culturas em presença. E o multiculturalismo é a recusa dessa hierarquia entre culturas.

A posição ideológica do Mesquitela reflecte a ideia grega dos sofistas, segundo a qual “o homem é a medida de todas as coisas”; mas, ainda assim, o Mesquitela entra em contradição fatal (passo a citar um trecho do referido texto):

“A posição relativista (cultural) não significa, de forma alguma, que todos os sistemas de valores, todos os conceitos de bem e de mal, assentem sobre areias tão movediças que não haja necessidade de uma moral, de formas de comportamento estabelecidas e aceites, de códigos éticos.

Aliás, o relativismo cultural é uma filosofia que aceita os valores estabelecidos em qualquer sociedade, acentuando a dignidade inerente a qualquer desses sistemas de valores e a necessidade de tolerância em relação a eles, embora possam diferir dos que adoptamos e pelos quais nos conduzimos. Reconhece ainda a necessidade de conformidade com normas estabelecidas, como condição necessária para a normalidade da vida em sociedade.”

Segundo o Mesquitela, por um lado existe a necessidade da existência de uma ética (que, por definição, tem que ser universal e é imposta a toda a sociedade por uma determinada cultura antropológica); mas, por outro lado, o Mesquitela defende que todas as culturas presentes na sociedade (por mais dispares que sejam, entre si) produzem éticas equivalentes e igualmente dignas de respeito. Isto é digno de um idiota.

Sábado, 13 Fevereiro 2021

Os valores, e o utilitarismo

Filed under: A vida custa,ética,valor — O. Braga @ 8:23 pm

“A alma civilizada é aquela a quem interessam as verdades não utilizáveis” — (Nicolás Gómez Dávila)


A professora Helena Serrão publicou um trecho de um tal Frondizi (ler em PDF), um argentino que se dizia “filósofo” e que era muito bem-quisto pelos pragmatistas (americanos). Começa (o trecho) assim:

“O que são os valores? Dizemos que os valores não existem por si mesmos: necessitam de um depositário sobre o qual descansam. Aparecem-nos, portanto como meras qualidades desses depositários: beleza de um quadro, elegância de um vestido, utilidade de uma ferramenta. Se observarmos o vestido, o quadro ou a ferramenta, veremos que a qualidade valorativa é distinta das outras qualidades”.

Gente como o Frondizi reduziu a realidade ao subjectivo e ao solipsismo; um novo tipo de irracionalidade (anticientífica, porque é subjectivista) passou a estar na moda.

A ideia-base do referido trecho do “dito cujo”, é a de que “o ser humano cria os seus próprios valores” — da mesma maneira que há quem defenda (os modernos) a ideia segundo a qual “o ser humano criou a matemática, a lógica, e até os números primos”. Há quem fale em “evolução da lógica”! A cada passo, a modernidade insulta a nossa inteligência.

A ideia do tal Frondizi (amigo do pragmatismo) não é nova; tem milhares de anos.

Os primeiros filósofos (gregos, pré-socráticos) tinham já proposto um procedimento simplista: «eleva-se o critério de utilidade, a um princípio de conduta de vida: aquilo que é útil para o indivíduo ou para a sociedade, deve ser designado de “bom”».

Por exemplo: se a avó adoeceu com COVID-19, ¿é mais correcto que a família inteira abandone a casa, de modo a não transmitir a infecção, ou cuidar dela, mesmo que não exista qualquer esperança de vida?

Para a sociedade, seria mais útil que doentes idosos infectados com COVID-19 fossem abandonados ao seu destino, para que a causa da doença (o vírus) permanecesse isolada.

O utilitarismo, que é a escola materialista que defende este tipo de “raciocínio” ético, tem um problema fundamental e insolúvel: ¿quem define o que é útil? ¿E para quem há-de ser útil?

Segundo o avô do utilitarismo (Bentham), o critério de acção moral deve ser o do “maior bem para o maior número de pessoas”. ¿E o que acontece com aqueles que não fazem parte do “maior número”? Aqui, neste particular, estou de acordo com Karl Marx, que dizia que “o utilitarismo é moral de merceeiro inglês”.


Acontece o seguinte: os valores devem ser possuir uma validade universal, por um lado, e ser categóricos, por outro lado. Se cada um de nós tem uma ideia radicalmente diferente daquilo que é “viver bem”, e daquilo que é útil para se poder “viver bem”, segue-se que as exigências de um perfil aproveitável dos valores, permanecem irrealizáveis.

Ademais, o pensamento utilitarista tem outro ponto fraco: se os valores (morais) são estabelecidos de acordo com os critérios de “utilidade individual ou social”, uma pessoa pode, perfeitamente e sempre, abandonar esta moral por motivos de uma prudência egoísta. O princípio radical do interesse próprio, em última instância, também pode ser muito “útil”.

“¿Porque razão deve a utilidade ‘para o maior número possível de seres humanos’, estar acima da ‘utilidade para mim’ ?!”

Quando o professor de “filosofia”, Peter Singer, defende a opinião (utilitarismo) segundo a qual os seres humanos com deficiências físicas graves não têm qualquer direito à vida, justifica a sua opinião, por um lado, com a situação real de um deficiente grave —“uma vida que não vale a pena” (diz ele, sic); mas, por outro lado, também com a utilidade que representa, para a sociedade, não ter encargos materiais e financeiros com essas pessoas deficientes.

Assim, em primeiro lugar, o referido e douto professor universitário de filosofia incorre em um Sofisma Naturalista — dado que não podemos tirar conclusões morais a partir de um facto. E depois, ele pressupõe a existência de um consenso acerca do valor e dos custos convenientes de uma vida humana — consenso esse que não existe, de facto.

Ao contrário do que diz o texto do dito cujo: os valores existem independentemente do ser humano — assim como, por exemplo, os números primos já existiam antes de o ser humano aparecer na Terra.

Os valores morais estão pré-determinados objectivamente; e os seres humanos apenas têm de os encontrar (ou de os descobrir). Isto significa que, tal como existe uma verdade objectiva no domínio da Natureza (corroborada pelo método científico), também existem valores morais objectivos, no domínio do espírito.

Segundo o filósofo Nicolau Hartmann, “os valores possuem uma existência em si” — e independentemente do facto de o sujeito os considerar (ou não) como tal. Não é necessário que os seres humanos deduzam os valores morais de uma utilidade qualquer! — pelo contrário, os valores morais têm valor porque possuem o seu valor em si mesmos! Assim, por exemplo, o valor da justiça vale por si mesmo — e isto pode ser compreendido por cada ser humano.

Se fizéssemos depender o valor da “justiça”, por exemplo, de algo que não estivesse previamente (de um modo ou de outro) incluído no seu significado — se deduzíssemos esse significado, por exemplo, a partir da utilidade, ou da oportunidade política — o valor da justiça estaria entregue à bicharada (ou melhor!: “entregue à modernidade”, o que soe ser o mesmo).

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