perspectivas

Sexta-feira, 30 Novembro 2007

O Existencialismo (1)

Devo dizer que não gosto do existencialismo, e portanto não sou insuspeito na minha opinião. Vou tentar falar do existencialismo de uma forma que a maioria entenda, isto é, dizendo mal dele.

Precedendo o Existencialismo moderno, estiveram Kierkegaard e Husserl: o primeiro foi um existencialista cristão que explorou a “possibilidade” como única salvação do Homem. O segundo utilizou a “ontologia”, isto é, a concepção do mundo que se revela pior ou melhor na medida das estruturas que constituem os modos do próprio Homem. Dostoyevsky e Franz Kafka são dois símbolos precursores do Existencialismo contemporâneo: este último seguiu Kierkegaard na ausência de livre-arbítrio do ser humano que paralisa as possibilidades humanas. Contudo, depois da II Guerra Mundial, o existencialismo evolui introduzindo conteúdos ideológicos do marxismo, por um lado, e do niilismo de Nietzsche, por outro, e é essencialmente materialista: considera o ser humano um animal finito e sem alma.

Quando lemos um livro de Albert Camus, sentimos o “absurdo do Absurdo”. O “absurdo do Absurdo” é o total desespero traduzido em palavras, é a máxima expressão da impotência do Homem perante a sua própria realidade, e traduz a recusa do Homem em reconhecer a sua pequenez perante o Universo: o Homem recusa a realidade, e culpa o Absurdo pelo absurdo. A culpabilização do Absurdo pelo absurdo nasce através das ideias de Heidegger.

De Nietzsche, o Existencialismo foi buscar o niilismo da ética sem hierarquia de valores – e por isso, uma ética absurda – e a negação de toda e qualquer metafísica deísta romântica. Do Marxismo, o Existencialismo foi buscar a essência finita do ser humano e a sua materialidade intrínseca. O Existencialismo do pós-guerra evoluiu mais recentemente dividindo-se em três correntes: a metafísica ontocosmológica, o espiritualismo radical, e o empirismo radical. A decadência do Existencialismo, que decorre actualmente e que transporta consigo a decadência da Europa, leva a uma recuperação das teses românticas do Infinito e do Absoluto nos Estados Unidos e na América Latina, aplicadas numa visão científica e cosmológica.

Martin Heidegger

A fenomenologia de Husserl e o carácter intencional da consciência (“intencionalidade”) está na base do Existencialismo.
Martin Heidegger estudou para padre num seminário e apoiou o partido nazi em 1933, enquanto reitor da universidade de Friburgo, através de um discurso sobre “A Auto-afirmação da Universidade alemã”. Heidegger quis ser padre e acabou nazi, e isto diz alguma coisa sobre a sua personalidade.

Heidegger foi um dos discípulos mais proeminentes de Husserl, e rompeu com o mestre quando transforma a subjectividade transcendental de Husserl numa subjectividade não-transcendental, isto é, material (“cisão existencialista”): o Homem é fruto exclusivo do que é aqui (“Ser-aqui”ou “Dasein”) e do “Aqui” que constitui o seu habitat (“Da”), e nada mais do que isso. Para Heidegger, a consciência não existe como algo isolado do Aqui (mundo). A transcendência, segundo Heidegger, é a capacidade do homem em estar no mundo, liberto de qualquer metafísica; o Homem transcende-se pela sua materialidade exclusiva.

“A transcendência significa o projecto e o esboço de um mundo, mas de tal modo que quem projecta é comandado pelo ente que transcende (mundo) e é antecipadamente modelado por ele.”

Portanto, a transcendência é um acto de liberdade do Homem material, sendo que a liberdade se limita a si própria em todas as direcções possíveis. Quando um ser humano elabora “o projecto e esboço de um mundo seu”, coloca-se a ele próprio nesse mundo e sofre as limitações desse mundo que ele projecta. Transcendemo-nos criando um mundo que nos limita. A “transcendência”, segundo Heidegger, está limitada ao Dasein (materialidade do Estar Aqui).

“A liberdade revela-se como aquilo que torna possível simultaneamente a imposição e a sujeição. Só a liberdade pode conseguir que, para o homem, um mundo exista e se realize como mundo”.

Um homem planeia o seu mundo, mas o seu projecto de mundo subordina-o imediatamente, tornando o homem dependente dele e ambicioso por ele. A liberdade é a vontade de fazer coisas, de mudar e de construir, mas ao fazermos tudo isso, perdemos a liberdade porque passamos a fazer parte do processo de mudança e de construção. A noção de absurdo existencialista começa aqui: somos livres mas não somos livres. E se “somos livres mas não somos livres”, tanto faz termos um projecto de mundo como não o ter, porque não tendo um projecto de mundo, isso constitui em si um projecto de mundo: o projecto de não ter um projecto.

Estou parcialmente de acordo com Heidegger. Um exemplo do que ele diz são os políticos que protagonizam um projecto de mundo (José Sócrates) e são condicionados na sua liberdade pela própria dinâmica de mudança que criaram. Porém, Heidegger não distingue a consequência da liberdade de um Mahatma Ghandi da consequência da liberdade de um Pol-pot; para Heidegger, é absolutamente irrelevante o que um ser humano faz com a sua liberdade, desde que “se transcenda” com um seu projecto de mundo, seja ele activo ou passivo. Aqui, já não concordo. Implicitamente em Heidegger está a ideia de que se uma pessoa mata outra, fá-lo no seu legítimo processo de “transcendência” e no exercício absoluto da sua “liberdade”, e nesta medida, matar ou não matar tem o mesmo valor “transcendental”. O aborto livre é o exercício do conceito de “transcendental” e de “liberdade” de Heidegger; o assassínio é punido por lei, mas pelas ideias de Heidegger, infere-se que se trata de uma convenção social que pode ser legitimamente revogada.

O Mundo de Heidegger é um mundo de “coisas”, e é na ligação do Homem às coisas do mundo que está a sua transcendência. A transcendência do Homem está na sua ligação com os utensílios materiais à sua disposição, e resume-se a isso. O fim último da utilizabilidade das coisas é a satisfação do Homem, e a satisfação implica que as coisas estejam “à mão” do Homem, que possam ser alcançadas pelo Homem; surge daqui o conceito de “espacialidade” de Heidegger. O espaço é um conjunto de determinações de proximidade e de afastamento das coisas baseadas na sua capacidade de utilizabilidade pelo Homem. O espaço existe em função da sua utilizabilidade.

As coisas existem no espaço, o Homem utiliza-as em função da sua proximidade, o Homem planeia em função da sua “espacialidade”, transcendendo-se e exercendo a sua liberdade que se auto-limita, e o Homem tenta compreender as suas auto-limitações através da compreensão das suas possibilidades de transcendência, surgindo a “interpretação” que dá lugar a um “juízo”. Do conceito de “interpretação”, Heidegger desenvolve o desconstrucionismo ideológico que deu lugar ao aparecimento de aberrações filosóficas como a de Derrida. O “juízo” é o valor da utilizabilidade da “coisa” em relação a determinado ser humano, e pode não ser a utilizabilidade da coisa em relação a outro ser humano. Do conceito de “juízo”, Heidegger desenvolve o relativismo.

Segundo Heidegger, é neste processo que vai da compreensão até ao juízo que se baseia a ciência, sendo que a ciência é relativista porque existe sempre a possibilidade do juízo científico ser alterado por um projecto humano. A “interpretação” e o “juízo” fazem de tudo o que utilizável como “coisas corpóreas”, cuja possibilidade de utilização se insere como um possível predicado. A “coisa corpórea” é uma simples presença, que convertida em objecto da ciência se transforma num “tema” possível de investigação e de orientação. Para Heidegger é uma “coisa corpórea” uma pedra como um feto humano, ou mesmo outro ser humano. Não existe uma escala ética na classificação das coisas corpóreas e da sua utilizabilidade pela ciência. Para Heidegger, o cientista pode transcender-se e exercer o seu acto de liberdade planeando o seu mundo, tratando de forma idêntica uma pedra e um feto humano como sendo “coisas corpóreas” utilizáveis.

Na minha opinião, Heidegger é muitíssimo mais perigoso que Marx, e foi em Heidegger que Hayek foi beber muita da sua base filosófica.

Para Heidegger, a Existência é, em si mesma, um Ser comparável a qualquer outro, é ela própria uma “coisa corpórea”, porque a Existência está no mundo como qualquer outra coisa. A Existência é uma “coisa”, como uma pedra é uma “coisa” – exactamente nesta medida, e nada mais do que isto.
Heidegger recusa o idealismo porque como “não existe um sujeito sem mundo”, também não existe “um Eu isolado, sem os outros” (influência marxista). O antropocentrismo de Heidegger é um antropocentrismo materialista desprovido do idealismo de Marx; é um antropocentrismo amorfo.

A substância do Homem não é o espírito, mas antes a existência. Descartes disse que “Penso, logo existo”; Kant disse que “Transcendo-me, logo existo”; Heidegger disse que “Existo, logo existo”. “Eu existo, logo existo”, é o absurdo de Heidegger.

Assim como a relação do Homem com as coisas é de apropriação natural e espontânea em função da sua proximidade, a natureza das relações do Homem com os outros é a “apropriação dos outros”, o tomar conta dos outros. Para Heidegger, o esclavagismo faz parte da ordem natural da existência, e por isso, não existe nenhum mal intrínseco no esclavagismo. “Tomar conta dos outros”, tanto pode ser ajudar os outros como escravizar os outros, e ambas as situações relativas se inserem na ordem natural da existência. O que pode levar um homem pelo primeiro caminho e preterir o segundo, é a sua liberdade e o seu projecto de mundo.

É neste contexto que surge o relativismo contemporâneo. Heidegger é o grande responsável pelo relativismo moral. Através da “interpretação” da linguagem, Heidegger conclui que a “coisa é assim porque assim se diz”, e se dissermos a coisa de outra forma, a coisa passa a ser outra coisa. E como a coisa pode ser diferente para cada uma das “coisas que são os seres humanos”, a coisa só é o que é para cada um deles, e portanto, não existe um conceito válido e comum de coisa para todos eles. E é válida a exaltação do assassínio em massa por parte da “existência anónima”, como a exaltação da paz, porque a “análise existencial” não se pronuncia sobre juízos de valor.

Através do conceito de “existência anónima” do ser humano, Heidegger intui o conceito de “dejecção”, isto é, a queda do ser humano ao nível da matéria inerte; o Homem é um dejecto, uma defecação; o Homem é merda.

A “dejecção”, segundo Heidegger, não se trata do resultado de um pecado original nem algo que o progresso da humanidade possa eliminar: faz parte essencial do ser humano, isto é, o Homem é uma merda por natureza, sempre foi e será. E como o Homem é uma merda, não existe mal intrínseco em colocar os outros homens ainda mais na merda do que já estão. Para Heidegger, trata-se de uma simples dialéctica escatológica.

Se juntarmos todas as peças do puzzle ideológico referenciadas neste texto, chegamos ao relativismo moral europeu contemporâneo e à ideia interiorizada pelas pessoas de que a Vida Humana nada vale – ou de que vale tudo, até arrancar olhos.

(a continuar)

Sobre Nietzsche ler: “O profeta do anticristo”

4 comentários »

  1. É bom que haja alguém com a lucidez e conhecimento suficientes para desmascarar todo este teatro montado para baixar o Homem à condição de inerte. Nem sequer lhes chega que seja uma besta, tem que ser mesmo merda…

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    Comentar por Henrique — Sábado, 1 Dezembro 2007 @ 6:47 am | Responder

  2. Absurdas são as coisas que li nessa crítica.
    Negar a existência e a conformidade humana é negar a própria liberdade.
    Estar alienado a idéias subjetivas ou qualquer outra forma de “sub-realidade”, é exatamente um absurdo.

    Péssima essa crítica sobre Nietzsche.
    Qualquer bem informado sabe que Nietzsche não apelava ao niilismo.
    Dizer que os escritos de Nietzsche são niilista, é mais que provar que você não entendeu nada do que ele escreveu.

    Teria mil razões para criticar essa sua crítica, mas seria perda de tempo.

    Favor, reveja seus conceitos.

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    Comentar por Rafael — Quarta-feira, 2 Abril 2008 @ 11:58 am | Responder

  3. Com o respeito possível, vem um tipo destes (comentador acima) dizer que Nietzsche não apelava ao niilismo. Por favor ler a Wikipedia : Nietzschean nihilism. Grande besta, na forma gratuita como critica sem saber a ponta-de-um-corno daquilo que diz e sem fundamentar a crítica.

    Sobre Nietzsche ler: “O profeta do anticristo”

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    Comentar por Orlando — Quarta-feira, 2 Abril 2008 @ 1:11 pm | Responder

  4. concordo plenamemte o penssamento acima ?

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    Comentar por o existencialismo — Quinta-feira, 30 Abril 2009 @ 12:39 am | Responder


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