perspectivas

Quinta-feira, 20 Agosto 2009

Quando o desejo se transforma em patologia

O desejo como carência radical

O desejo como carência radical

Não é possível entendermos as actuais tendências anti-humanistas de diversa ordem e origem, que inclui o ecofascismo, o abortismo, o gayzismo, o bloquismo, o socratinismo, etc, sem percebermos as formas enviesadas, patológicas e sociopatas em que se transformou fenómeno humano do “desejo” em relação a uma determinada subcultura política ocidental de herança gnóstica.

O desejo é eminentemente humano; sem desejo, o Homem é um cadáver.

Porém, quando o desejo de afasta da razão de forma a não ser controlável por ela, o primeiro substitui a segunda e passa a querer conter a própria razão em si mesmo; existe uma transferência simbólica da razão para o próprio desejo que se torna passível da sua incondicionalidade ― o desejo passa a não poder ser colocado em causa de forma nenhuma, e muito menos pela razão, por que o desejo pretende integrar a razão na sua visão holística da realidade. Naturalmente que essa integração é impossível, mas o desejo patológico assume enviesadamente essa anulação e a subordinação inconsciente da razão.

Assim, a razão passa ― de uma forma irracional ― a fazer parte integrante do desejo que se torna imune ao juízo crítico. É, de certa forma, o corolário da evolução do pensamento misantrópico de Rousseau do primado do instinto sobre a razão, transportando consigo todas as contradições que sabemos que o ideólogo suíço infelizmente nos deixou como uma marca da perversidade humana que perdura até hoje. Rousseau entendia o progresso como um retorno às origens, isto é, à natureza, ao mesmo tempo que admite que o Homem vivendo numa condição natural — inteiramente subordinado à Natureza — nunca tenha existido. Assim, viver na condição natural passa a ser a aceitação consciente da procura de viver de acordo com o racionalmente impossível, o que implica uma metanóia que acaba por fazer exactamente o contrário daquilo que é defendido por Rousseau: o Homem separa-se da sua natureza humana, e a única forma de o fazer é subordinando a razão ao desejo. Rousseau defendeu uma ideia que resultou, na prática, exactamente no seu contrário.

Trata-se de uma patologia que se manifesta através de uma misantropia sociopata profunda e que é praticamente impossível de erradicar, porque através de uma metanóia se transforma numa espécie de monismo religioso. A noese deixa de ter a normal componente analítica para passar a ser a apreensão acrítica e sintética do noema (existe um “salto” crítico no processo de conhecimento), o que significa, de facto, a superiorização absoluta do desejo como guia da condição humana. O que se trata é da tentativa da “irracionalização racional” do ser humano através de um processo de submissão da razão ao desejo.

Este fenómeno está bem patente no gayzismo através da personificação do desejo como sinónimo absoluto da identidade do gay entendido como uma entidade destacada da natureza humana. O “desejo gay” é o significado imediato da sua própria identidade, ele resume a própria identidade gay destacada de qualquer outra realidade inerente à natureza humana. Assim, o “desejo gay” passa a ser algo de inegociável na medida em que ninguém negoceia a sua própria identidade, com a diferença de que o ser humano racionalizado atende à lei natural, como manifestação da razão, para delimitar os seus desejos, enquanto que o “desejo gay” é indelimitável em função da sua supremacia absoluta sobre a razão.

O desejo não é a pura manifestação da vontade nem resulta de um estado de necessidade (instinto puro).

Para Freud, o desejo não procura tanto o objecto que deseja mas muito mais o fantasma inconsciente que suporta esse desejo ― fantasma que se radica numa situação de proibição ou o tabu que é suporte de qualquer cultura e de qualquer civilização desde tempos imemoriais. Segundo Freud, através do superego a delimitação racional do desejo exerce um papel imprescindível na formação equilibrada do ser humano e na construção de uma personalidade socializada.
Assim sendo, quando o desejo subordina absolutamente a razão e passa a ser condição sine qua non e irracionalmente inegociável da afirmação identitária, o processo da formação do superego é parcialmente anulado em função da afirmação do desejo como o “fantasma” que ignora tudo que não seja a sua própria realidade.

O ecofascismo é outra das manifestações patológicas resultantes da supremacia absoluta do desejo sobre a razão. Ademais, o ecofascismo, o abortismo e o gayzismo são manifestações do mesmo tipo de fenómeno, e por isso são indissociáveis. Assim se explica que nenhum gayzista deixe de ser um abortista convicto e um fundamentalista ecológico; e que um ecofascista não defenda a legitimidade da afirmação absoluta do “desejo gay” como identidade inegociável; ou que um abortista não entenda o gayzismo como a única forma de “justificação moral” para se evitar o aborto ao mesmo tempo que afirma a concordância absoluta entre a preservação da natureza e o aborto necessário. E todos eles são contra a religião metafísica por que esta sublima racionalmente o desejo; a religião metafísica racionaliza o desejo, e por isso é recusada pela patologia da afirmação reverencial do desejo sem limites racionais.

A rejeição da excepcionalidade humana é o sinal exterior visível ― a ponta do aicebergue ― que caracteriza a sociopatia e a misantropia patológica de uma sub-cultura niilista, que encontra na “construção do paraíso na terra” uma simples justificação para a sua patologia anti-humanista que se escora na supremacia absoluta e aberrante do desejo sobre a razão.

8 comentários »

  1. “Quando o desejo se transforma em patologia”

    O desejo da existência de um ser superior que nos pode proteger para toda a eternidade, mesmo com um preço, ‘e certamente o exemplo mais espanhado desse fenómeno.

    José Simões

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    Comentar por Jose Simoes — Quinta-feira, 20 Agosto 2009 @ 11:21 pm | Responder

  2. Adorei ler isto. :)))
    Qual é a relaçao entre desejo e emoçao?
    Até que ponto a emoçao, aquilo que determina a acçao, influencia, ou condiciona, o desejo? ou, ao contrário, até que ponto o desejo condiciona a acçao para se tornar ele próprio, irracional?

    Eu explico:
    Basicamente, sentimos medo e somos movidos a afastarmo-nos de um local. Sentimos entusiasmo (alegria, bem-estar… o que for) e queremos repetir a dose. Num nivel emocional de antagonismo, atacamos quase sempre sem controle, o oponente. Assim, a emoçao condiciona/motiva a acçao.

    Onde é que entra aqui o desejo, dado que o desejo estaria ligado à sobrevivência, ou melhor, à SOBREvivência e dado que o objectivo da Vida é atingir um estado de Ser ideal, conquistando nesse processo, o máximo de universo físico?

    E, qual é o mecanismo por trás do desejo que o impele para uma condiçao patológica? Quero dizer: O desejo patológico como exposto, é em si uma aberraçao (e muito bem explicada). O que o traz à existência dado que a racionalidade nao depende tanto da cultura mas mais do ideal, do maior bem para o maior número de dinâmicas (tendências em prol da sobrevivência entanto que indivíduo, entanto que membro de um qualquer grupo, entanto que parte da espécie, de entre outras dinâmicas.

    Desde já agradeço qualquer resposta que queira considerar endereçar-me.

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    Comentar por guttendorf — Terça-feira, 23 Outubro 2012 @ 1:51 am | Responder

  3. Há que fazer a distinção entre instinto, desejo, emoção, e vontade. São coisas diferentes.

    O instinto é irracional e animal. Por exemplo, a libido.

    O desejo pertence ao inconsciente. Por exemplo, o Eros.

    A emoção pertence ao subconsciente. Por exemplo, a filia.

    A vontade pertence ao consciente. Por exemplo, o ágape.

    Num ser humano equilibrado, estas quatro componentes são filtradas pelo juízo que determina a acção. Por isso é o ser humano é livre, na medida em que detém um livre-arbítrio.

    Segundo S. Tomás de Aquino, a principal diferença entre um ser humano e outro animal qualquer é a de que o ser humano é capaz de representar o objecto do seu desejo na ausência desse objecto e, portanto, o arbítrio do ser humano é livre — enquanto que um animal irracional não é capaz de o fazer e, portanto, o arbítrio de um animal irracional não é livre.

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    Comentar por O. Braga — Terça-feira, 23 Outubro 2012 @ 3:40 pm | Responder

  4. Obrigado pelo tempo que me dedicou.

    Postas as coisas assim, entao, nao há aberraçao. É tudo uma questao de escolhas aparentemente motivadas pelo desejo. No tentanto… quando o desejo adoece, significa que alguma computaçao mental se tornou aberrada, afastando-se do racional, do que poderia e deveria ser considerado sobrevivente, o tal filtro nao está a funcionar plenamente ou pelo menos, correctamente. Isso é uma condiçao cada vez mais vulgar. Talvez seja melhor eu esclarecer que aquilo que em termos comportamentais se usa chamar doença, eu prefiro chamar aberraçao.

    Eu nao quero entrar num campo particular como a política ou o gayismo… Concentrar-me num determinado campo é desinteressante dado que o indivíduo acabará por evidenciar um padrao de comportamento predizível que se manifesta em todas as suas actividades e aspectos da personalidade e é a partir daí que eu procuro ver as coisas.

    Prefiro discutir a condiçao Humana e isso já nao é pouco.

    Eu acho que a maioria das pessoas nem tem consciência do poder de escolha que têm. E das que o usam, acabam por falhar na maior parte das tentativas. Um mar de dados falsos estaria como causa. Será aqui que o desejo começa a adoecer, ao introduzir dados falsos na computaçao da preparaçao para a acçao e/ou durante e execussao?

    Eu nao vejo necessidade de fazer a distinçao quando se fala de um desejo doente. Claro que referi a emoçao, mas apenas para dizer que é ela a ligaçao entre a ”necessidade” de sobreviver e o prazer (desejo).

    Arbítrio e desejo conjugam-se em funçao do prazer (resultado). O masoquismo, por exemplo, é uma manifestaçao de um tom emocional muito baixo e uma aberraçao. No entanto, por trás da crença do masoquista o prazer que sente é real para ele. Aqui aparece a crença como determinante, acima da razao e transmutando o desejo.

    Eu deixei de usar “consciente”, “sub-consciente” e “inconsciente”. É uma terminologia que me confunde. Consciência é o ter-se conhecimento de. Quando o meu corpo produz adrenalina suficiente num momento em que preciso dela, quando o pulso aumenta e a respiraçao acelera porque estou febril ou exausto… isso quer dizer que o centro de controle do corpo, o eu, tem consciência do que se está a passar. Tornar a administraçao dos comandos que presidem a todos os eventos orgânicos nao implica que sejam inconscientes. Inconsciente é aquele que voluntariamente poe a vida em risco.

    Eu uso a terminologia de L. Ron Hubbard: Mente Analítica, Mente Reactiva e Mente Psicossomática e tenho obtido uma maior compreensao de mim e do meu semelhante desde que a utilizo. Tornei-me mais racional, mais livre e mais responsável. Os meus desejos nao foram afectados. As minhas emocoes talvez sejam mais verdadeiras agora. A líbido manteve-se, o eros refinou-se… mas isto vem tb da experiência… E passei a estar mais consciente das minhas vontades. Deixei de ter que me esforçar para que a Razao presida às minhas ideias, às minhas tomadas de posiçao… às minhas atitudes e a uma grande parte das minhas acçoes. Sinto-me bem, sinto-me mais capaz.

    Esta divisao dos seres animais em racional e irracional é, na minha perspectiva, errada.
    Um leao nao mata 358 gazelas. Se um homem vulgar leva um soco, nao pára para perguntar porque lhe deu o outro o soco, reage e dá outro soco ainda com mais violência. Isto nada tem de racional. Racional é o leao. O Homem é um ser emocional. Por isto, descarto a possibilidade de me compararem a um animal. A partir daqui, todas as teorias que se têm vindo a desenvolver desde que Wilheml Wundt ”inventou” a racionalidade do homem, estao votadas ao fracasso e facto é que nao há tratamento que seja eficaz nas áreas que usam o seu princípio da racionalidade do Homem como a Psicologia Moderna, a Psiquiatria ou a Psicanálise.

    Eu sou da opiniao de que uma mulher casada nao deve ter amigas divorciadas. Pode parecer estranho, mas o divórcio é insucesso, é um propósito falhado.
    E como tudo tende a sobreviver em direcçao à sobrevivência infinita, a mulher divorciada acabará por levar outras a divorciarem-se agindo subreptíciamente como terceiro partido. Ela nao quer estar sozinha e quer aumentar o número, quanto mais nao seja, para dizer: Estao a ver, afinal nao sou só eu (a frustrada), há mais e se calhar, até temos razao (motivos idênticos aos do gayismo).

    Há tanta coisa que eu gostaria de comentar… adorava ter o meu pensamento melhor organizado. 🙂

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    Comentar por guttendorf — Terça-feira, 23 Outubro 2012 @ 10:05 pm | Responder

    • Onde se lê: “Tornar a administraçao dos comandos que presidem a todos os eventos orgânicos, nao implica que sejam inconscientes.”
      leia-se, “Automatizar a administraçao dos comandos que presidem a todos os eventos orgânicos, nao implica que passem a ser inconscientes.”

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      Comentar por guttendorf — Terça-feira, 23 Outubro 2012 @ 10:12 pm | Responder

      • 1/ os “aspectos particulares” referidos no artigo apenas servem de exemplo. Um exemplo — ou seja, uma noção — ilustra um conceito ou, neste caso, a explanação de um raciocínio.

        2/ as pessoas, normalmente, quando olham para o seu passado, verificam que “as coisas aconteceram de uma determinada maneira”, ou seja, a acção humana é transformada em um “objecto de reflexão” que está sujeito a uma sequência causal de influências e motivos, que fazem transparecer a acção realizada como sendo a única possível — a acção transforma-se em uma coisa natural, e por isso, está determinada (determinismo); e a partir desta constatação, passamos a ter — de uma forma mais ou menos consciente — uma visão determinística da realidade e da condição humanas.

        Porém, se o ser humano não olhar para o passado mas antes olhar para o momento do seu presente que é vivo, a acção humana deixa de ser um processo natural e passa a ser, pelo contrário, um acto moral aberto ao futuro, e por isso, livre.

        3/ a emoção não é necessariamente a “ligação entre a necessidade de sobreviver” (ou instinto de sobrevivência) e o desejo. A emoção é o reconhecimento intuitivo do valor. E sendo intuitivo, a emoção é uma forma primordial de inteligência.

        E, por outro lado, o desejo pode não ser sinónimo de prazer (por exemplo, o desejo de suicídio pode não dar prazer a quem o sente).

        O que pode acontecer é que o valor, que a emoção reconhece intuitivamente , seja parcial, incompleto ou mal interpretado pela intuição. Mas não podemos confundir a emoção com o desejo, da mesma forma que não podemos confundir, por exemplo, vontade com juízo.

        Quando a emoção deturpa o valor, ou quando a emoção não compreende o valor de uma forma integral, apenas capta do valor uma parte que é, por isso, uma forma incompleta desse valor. É por isso que vulgarmente se confunde, por exemplo, ódio, por um lado, com amor, por outro lado: a confusão entre estas duas emoções decorre de uma interpretação intuitiva e deturpada dos respectivos valores.

        De forma semelhante (mas não idêntica), “prazer” não é a mesma coisa que “sofrimento”. O masoquista apenas confunde o valor.

        Este assunto do prazer e da dor é clássico, e podemos ler acerca dele desde Aristóteles até Stuart Mill, passando por John Locke. Não dá para explanar o assunto aqui.

        4/ não existe uma definição de consciência, ou seja, não existe uma noção de consciência. Podemos apenas ter um conceito alargado de consciência — que engloba apenas um conjunto de noções limitadas de consciência, por exemplo, consciência moral, consciência psicológica, consciência filosófica, etc..

        Quando se diz que “a consciência é ter conhecimento de”, apenas se refere à consciência psicológica — ou seja, apenas se refere a uma pequena parte de um conceito indefinido de consciência. O conceito de “consciência”, tal como acontece com o conceito de “realidade”, não tem definição possível. Não é possível definir “realidade”, assim como não é possível definir “consciência”, porque de facto, consciência e realidade são idênticas.

        Tudo o que possa dizer acerca da “consciência”, entendida em termos abstractos, é tão especulativo, ou impreciso, ou indefinido, como tudo o que se possa dizer acerca da “realidade”.

        5/ não podemos confundir racionalidade, por um lado, com racionalismo, por outro lado. O que foi “inventado”, com o Iluminismo, foi o racionalismo, e não a racionalidade. O assunto é complexo e não cabe aqui.

        6/ quando um animal mata apenas por instinto de sobrevivência, isso não significa que ele seja racional. E quando outro animal mata por resposta emotiva deturpada a uma emoção (valor), isso não significa que ele não seja racional.

        7/ a opinião não fundamentada científica e epistemologicamente é apenas uma opinião emotiva (doxa) e não racional (episteme).

        8/ em relação às mulheres divorciadas: quem está na desgraça não quer ficar sozinha. Como diz o povo: “diz-me com quem andas, e dir-te-ei quem és!”.

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        Comentar por O. Braga — Quarta-feira, 24 Outubro 2012 @ 12:34 am

      • Naturalmente que o espaço é pequeno e o tempo é curto para detalhar aqui.
        De qualquer forma, foi elucidativo o suficiente para ajudar a um melhor raciocínio.
        Muito obrigado.

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        Comentar por guttendorf — Quarta-feira, 31 Outubro 2012 @ 11:38 pm


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