perspectivas

Domingo, 31 Julho 2011

Não é possível uma ética universal sem Deus (3)

O Milenarismo

Falar do quiliasmo e do milenarismo em um postal é loucura (quiliasmo e milenarismo não são sinónimos, embora estejam interligados). Não obstante — e tendo eu seguido o conselho do Papa Bento XVI e ter adoptado a Bíblia para leitura neste Verão —, deparei-me com alguns textos bíblicos que explicam, em grande parte, a emergência do movimento revolucionário. Dou alguns exemplos.

“Nós, porém, devemos dar continuidade graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, pois Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação na santificação do Espírito e na fé da verdade” — Paulo, (2 Tes., 2,13).

Calvino não diria melhor que S. Paulo!
Vemos aqui o quiliasmo — o determinismo gnóstico dos predestinados, eleitos ou pneumáticos — que, com o messianismo milenarista, está na base do desenvolvimento do movimento revolucionário já na Idade Média.

Em Paulo (1, Tes., 4, 13-18), verificamos já não o quiliasmo, mas o messianismo dos “últimos tempos”. Em Paulo (1, Cor.,15, 12-32), constatamos o milenarismo. Existem mais passagens de S. Paulo, deste tipo. Porém, se formos ao capítulo XX do Livro do Apocalipse, verificamos ali, escarrado, o milenarismo puro e duro, e fazendo menção ao reino de Gog que podemos ver em Ezequiel 38, o que denota claramente uma relação estreita entre o messianismo judaico e o milenarismo cristão.

Outros exemplos de messianismo judaico que influenciou directamente o milenarismo e o quiliasmo cristãos: Isaías 24-25; Ezequiel 36-40; Daniel 2, 8-9, 12.
Em Amós 9, versículo 11 (Esperança Messiânica), podemos ler: “Naquele dia, levantarei a cabana arruinada de David, repararei as suas brechas, restaurarei as suas ruínas; hei-de reconstruí-la como nos dias antigos; e segue o mesmo tipo de discurso. Vemos aqui a conotação cíclica do tempo (o tempo cíclico que vai e volta, a história que se repete, o ciclo das estações, o eterno retorno que Nietzsche foi buscar aos hindus do Yuga) que está presente em toda a forma de messianismo e de milenarismo. O tempo linear ou histórico é apenas quantitativo, e não é qualitativo; a qualidade do tempo é determinada pelos ciclos temporais intimamente ligados aos ciclos cósmicos que se reflectem na vida terrena e na História.


O messianismo judaico distingue-se do milenarismo cristão essencialmente porque no segundo caso espera-se a segunda vinda do Messias, enquanto que no messianismo judaico, o Messias ainda não veio. Naturalmente que existem outras características adicionadas pela própria situação histórica em que decorre a metamorfose do messianismo judaico em milenarismo cristão.

No milenarismo (cristão), é relativamente indiferente se um período histórico linear dura mil anos ou mais; a medida temporal convencionada dos “mil anos” do tempo linear (de onde advém o termo “milenarismo”) que antecede o Fim dos Tempos, é (na maior parte dos casos dos teóricos milenaristas) apenas simbólica.

Para além dos textos cristãos referidos acima — e de muitos outros de Paulo que não cabe aqui agora referir — que podemos dizer que sofrem uma clara influência gnóstica e milenarista, sobressai o próprio Evangelho de S. João, que Dionísio de Alexandria não hesitou em considerar apócrifo, e cuja interpretação literal foi condenada por Orígenes. Portanto, o Evangelho de S. João é um texto gnóstico e milenarista, assim como o são o Livro do Apocalipse e as passagens das Cartas de S. Paulo acima referidas.


Contudo, não existiu uma só forma de milenarismo — e aqui começa a complicação. Basicamente, existe um milenarismo imanente (imanência em oposição à transcendência do Juízo Final de Santo Agostinho, de que falaremos no próximo postal porque este já vai longo) e um outro milenarismo material.

O milenarismo imanente é o que corresponde, por exemplo, ao Livro do Apocalipse e ao dos cristãos da Ásia (asiatas), e em que se afirma a existência, na Terra, de um estado intermediário e imanente (um estado não-material tout-cours) destinado aos santos ressuscitados, embora esse estado intermediário não mereça grandes explicações acerca da sua natureza, o que lhe dá precisamente esse carácter imanente (“imanência” aqui entendida no sentido da imanência budista).
Este tipo de “milenarismo da esperança” atribui ao reino terreno do Messias determinados traços paradisíacos — fecundidade da Terra, abundância material, paz entre os homens e entre os animais (copiando, aqui, o messianismo judaico : “então o lobo habitará com o cordeiro”, Isaías, 11).

O milenarismo material, protagonizado, por exemplo, pelos ebionitas, não é tão ambíguo: esperam mesmo o paraíso material na Terra, em que os homens se tornam perfeitos como Deus. Dentro deste milenarismo material encontra-se a corrente milenarista helenizada de Alexandria que assume contornos de particular complexidade ideológica e simbólica. A epístola do apóstolo Barnabé — que, de facto, não é dele mas apenas atribuída a ele, e da autoria de um anónimo do século II — reflecte precisamente esta visão materialista do paraíso terrestre no Fim dos Tempos.

O conceito helenístico dos “sete milénios” constitui, aqui (e simbolicamente), a História Total: um dia [da semana] da vida de Deus corresponde [mais ou menos simbolicamente] a um milénio do tempo terrestre [influência hindu da teoria do Yuga ?], e como Deus concebeu o mundo em sete dias, o sétimo dia [que é do dia de descanso de Deus e da Sua obra, e em que Deus suspende a sua criação e o Homem suspende a sua procriação] corresponde ao sétimo milénio. Para além do sétimo dia [que corresponde ao sétimo milénio], o milenarismo de Alexandria vai buscar o “oitavo dia” ao Cristianismo — o dia da ressurreição! Neste conceito global de Tempo Total [sete milénios] + o “oitavo dia” [fim escatológico], vemos claramente a influência epistemológica gnóstica da passagem do septenário para a odgóade — e não propriamente a manifestação de uma esperança na ressurreição, como acontecia com a primeira forma de milenarismo.

(continua)

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  1. […] Não é possível uma ética universal sem Deus (3) (via perspectivas) Publicado em julho 31, 2011 por Carlos Vendramini O Milenarismo Falar do quiliasmo e do milenarismo em um postal é loucura (quiliasmo e milenarismo não são sinónimos, embora estejam interligados). Não obstante — e tendo eu seguido o conselho do Papa Bento XVI e ter adoptado a Bíblia para leitura neste Verão —, deparei-me com alguns textos bíblicos que explicam, em grande parte, a emergência do movimento revolucionário. Dou alguns exemplos. “Nós, porém, devemos dar continuidade graças a Deus por … Read More […]

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