perspectivas

Terça-feira, 24 Julho 2012

Neognosticismo

Existe (ainda) uma certa ética cristã “voluntarista” — de origem em S. Paulo, continua por Santo Agostinho, segue com a irmandade franciscana, é adoptada por gente como Henrique de Gand ou Abelardo, foi seguida pela Escola de Port-Royal e por Pascal, entrou na Reforma através do calvinismo e do puritanismo, influenciou Kant, Hegel e o romantismo alemão, e finalmente descambou com Nietzsche com a sua inversão da vontade. Esta corrente ética voluntarista parte do paradoxo paulino: por um lado, a ética depende exclusivamente da nossa vontade; e por outro lado, depende do determinismo imposto por Deus — hoje, o determinismo de origem divina foi substituído pelo determinismo da natureza, mesmo sabendo-se que existe a física quântica.

Prefiro a concepção ética de S. Tomás de Aquino:

  • (1) é preciso obedecer sempre à nossa consciência, mesmo que possamos estar eventualmente errados;
  • (2) o acto cometido por uma consciência errada ou errónea continua a ser mau e distinto do de uma consciência informada; e por isso, há também a necessidade de informarmos a nossa consciência no sentido de evitarmos, quanto seja possível, os erros grosseiros na acção ética;
  • (3) o Direito Positivo tem a sua origem no direito natural que pertence às origens da criatura racional e que o tempo não muda, mas antes é imutavelmente permanente;
  • (4) o Direito Positivo é a incarnação do direito natural na História; e a dominação de um homem pelo outro já existia antes da “queda” e no estado de natureza no sentido das relações políticas entre um príncipe e os seus súbditos — porque o homem é um ser político: o direito natural é a forma do direito histórico;
  • (5) o ser humano é possuidor de livre-arbítrio, e a verdade é a adequação da consciência à realidade.

Ao contrário da concepção ética aristotélica de S. Tomás de Aquino, a estirpe platónica da ética — o “voluntarismo” — é iminentemente escapista [escape à realidade objectiva] e potencialmente gnóstica.

Por exemplo, os franciscanos medievais [desde a Alta Idade Média] defendiam a tese segundo a qual a própria natureza foi “quebrada” pela História [vemos as semelhanças com o movimento revolucionário moderno] por causa do pecado original [o “bom selvagem”, de Rousseau]. E os franciscanos baseavam esta sua tese na concepção ética de Santo Agostinho que, por sua vez, a foi buscar a S. Paulo.

Antes da “queda” — cogitavam os franciscanos medievais —, ou seja, antes do pecado original, no estado de uma natureza instituída, não existia nem senhor nem escravo [Rousseau], mas apenas a posse natural sem direito sobre as coisas [utopia platónica da República]; depois disto, para acudir às fraquezas humanas, foi instituída pelo homem a propriedade privada, (por exemplo, em Alexandre de Hales, “Suma do Irmão Alexandre”) introduzindo assim o direito e as relações de dominação [desconstrutivismo moderno e, por exemplo, marxismo cultural ou Derrida].

O próprio direito — ruminavam ainda os franciscanos — foi cindido pela “queda”, porque o direito natural é o estado da natureza humana antes do pecado original, antes da propriedade privada e antes da dominação: o Direito Positivo é, assim, concebido para uma natureza pecadora, o que significa que, para os franciscanos, existiu na Terra o Homem sem pecado e perfeito, e uma sociedade em que não existia o sofrimento nem a morte. Estamos em pleno gnosticismo cristão!

Podemos vislumbrar as influências da estirpe voluntarista da ética franciscana / agostiniana em gente tão diversa como, por exemplo, no bispo esquerdista Torgal Ferreira ou no radical Francisco Louçã. É isto que chamamos, grosso modo e entre outras razões, de “gnosticismo moderno”, ou neognosticismo.

Sexta-feira, 20 Julho 2012

A autonomia do indivíduo e a desconstrução da família nuclear (2)

Estava eu a ler um texto sobre a Lei Natural [em inglês] segundo S. Tomás de Aquino, quando me lembrei de escrever qualquer coisa sobre o assunto, e ainda a propósito da política absolutista da autonomia do indivíduo — ou política dos direitos humanos, sendo lógico que os direitos humanos não podem ser, em si mesmos, uma política.

Desde logo, fica-me a ideia de que a Lei Natural de S. Tomás de Aquino não é exactamente a mesma Lei Natural de Santo Agostinho e do apóstolo Paulo [este assunto fica para o próximo verbete]. E toda esta história da Lei Natural [com excepção da visão tomista da Lei Natural] se relaciona com o gnosticismo e, consequentemente, mais tarde na História, com o cientismo [ou talvez possamos chamar-lhe “positivismo degradado”].

Eric Voegelin definiu assim o gnosticismo:

“O gnosticismo é um sistema de crenças que nega e rejeita a estrutura da realidade, particularmente a realidade da natureza humana, e substitui-a por um mundo imaginário construído por intelectuais gnósticos e controlado por activistas gnósticos.” — Eric Voegelin, “A Nova Ciência da Política”, 1952

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Domingo, 31 Julho 2011

Não é possível uma ética universal sem Deus (3)

O Milenarismo

Falar do quiliasmo e do milenarismo em um postal é loucura (quiliasmo e milenarismo não são sinónimos, embora estejam interligados). Não obstante — e tendo eu seguido o conselho do Papa Bento XVI e ter adoptado a Bíblia para leitura neste Verão —, deparei-me com alguns textos bíblicos que explicam, em grande parte, a emergência do movimento revolucionário. Dou alguns exemplos.

“Nós, porém, devemos dar continuidade graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, pois Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação na santificação do Espírito e na fé da verdade” — Paulo, (2 Tes., 2,13).

Calvino não diria melhor que S. Paulo!
Vemos aqui o quiliasmo — o determinismo gnóstico dos predestinados, eleitos ou pneumáticos — que, com o messianismo milenarista, está na base do desenvolvimento do movimento revolucionário já na Idade Média.
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Sexta-feira, 12 Novembro 2010

A herança judaica da nossa concepção da História

Filed under: cultura,filosofia — O. Braga @ 6:44 pm
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O tempo histórico linear é uma herança do Judaísmo. Em mais nenhuma outra cultura do mundo existia um sentido histórico linear, marcado por um qualquer tipo de messianismo. Em praticamente todas as culturas — e ainda hoje, em muitas delas, apesar da “colonização” judaico-cristã — o tempo é cíclico. A maior parte das culturas — incluindo a cultura romana — tinha como paradigma o tempo primordial (Ó Tempora! Ó Mores!).
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Quarta-feira, 16 Dezembro 2009

A igualdade humana como uma deturpação da realidade

Filed under: cultura — O. Braga @ 12:26 pm
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Ao ler este texto no Brussels Journal, ocorreu-me esta passagem do Evangelho segundo S. Mateus:

21 Jesus partiu dali e retirou-se para os arredores de Tiro e Sidónia.
22 E eis que uma cananeia, originária daquela terra, gritava: Senhor, filho de David, tem piedade de mim! A minha filha está cruelmente atormentada por um demónio.
23 Jesus não lhe respondeu palavra alguma. Os seus discípulos vieram a ele e disseram-lhe com insistência: Despede-a, ela persegue-nos com os seus gritos.
24 Jesus respondeu-lhes: Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.
25 Mas aquela mulher veio prostrar-se diante dele, dizendo: Senhor, ajuda-me!
26 Jesus respondeu-lhe: Não convém deitar aos cães o pão dos filhos.
27 Certamente, Senhor, replicou-lhe ela; mas os cães ao menos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos…
28 Disse-lhe, então, Jesus: Ó mulher, grande é tua fé! Seja-te feito como desejas. E na mesma hora sua filha ficou curada.

A cananeia do relato do Evangelho segundo S. Mateus (Cap. 15, 21 – 28) era uma mulher pagã que adorava os Baals ou as Ashtartés, e daí a alusão de Jesus às “ovelhas perdidas da casa de Israel”. Jesus reconheceu e transmitiu-nos um facto muito simples que decorre da pura realidade: os Homens não são todos iguais, porque não nascem todos iguais e porque fazem diferentes usos da vontade individual. Quando a cananeia reconheceu humildemente o facto da sua desigualdade, Jesus cedeu e passou a tratá-la como igual. Portanto, paradoxalmente, só é possível um tratamento relacional que faça a equivalência de um ser humano em relação a outro, através do reconhecimento explícito de que os seres humanos não são iguais.
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