perspectivas

Domingo, 27 Outubro 2013

As análises históricas deve ser feitas em contexto

 

Uma qualquer análise às origens do nazismo não pode prescindir do contexto histórico e político, ou seja, não devemos considerar as correntes ideológicas nacionalistas alemãs, a partir da Reforma de Lutero, sem ter em conta a realidade política e efectiva daquilo a que se veio a tornar, na segunda metade do século XIX e com Bismarck, no “Segundo Reich” na Alemanha.

alemanha no seculo XVIII webPara que se tenha uma ideia do que se quer dizer, no século XVIII um português e/ou espanhol médio viviam muito melhor (tinha muito melhor nível de vida) do que um alemão médio, e a principal razão para essa diferença é que, de facto, não existia tal coisa a que chamamos hoje “Alemanha”: o actual território alemão era uma manta de retalhos de nacionalidades independentes (clique para ampliar o mapa da Alemanha no século XVIII), com variantes linguísticas diferentes, herdada do Sacro Império Romano-Germânico que se mantinha pateticamente em vigor 1.

Na Alemanha não existiu o absolutismo monárquico do mesmo tipo que existiu por exemplo em França, pela simples razão de que não havia nenhum rei que pudesse ser o símbolo de um Poder absoluto de um país unificado. Nem sequer se poderia falar de um país, porque as culturais regionais e as respectivas línguas, assim como as variantes religiosas, era diferentes no território a que chamamos hoje de Alemanha. A unificação da Alemanha foi 2 uma utopia que começou de forma insipiente com a Reforma. 3

A variante alemã do absolutismo foi o Wohlfahrtsstaat ou Camaralismo, ou ainda Estado de Polícia, em relação ao qual Kant escreveu o seguinte:

“Um governo que fosse fundado sobre o princípio da benevolência para com o povo, tal como a do pai para com os filhos, quer dizer, uma governo paternal (imperium paternale), no qual, por consequência, os súbditos, quais filhos menores, incapazes de decidir do que para eles é verdadeiramente útil ou prejudicial, são obrigados a comporta-se de maneira unicamente passiva, a fim de esperar apenas do juízo do Chefe de Estado o modo como devem ser felizes, e apenas da sua bondade que ele igualmente o queira — um tal governo, digo, é o maior despotismo que se pode conceber (constituição que suprime toda a liberdade dos súbditos que, desde logo, não possuem direito algum)” 4

Kant reconheceu que o Wohlfahrtsstaat era muito pior, no que respeita à restrição das liberdades dos súbditos, do que o feudalismo dos Três Estados (Nobreza, Clero e Povo) — com excepção do feudalismo na Prússia que adquiriu contornos específicos e tenebrosos. Por exemplo, na Idade Média, um camponês português ou espanhol era perfeitamente livre de deixar de trabalhar para um suserano e ir trabalhar para outro; ou era livre de deixar a sua actividade profissional no campo e adoptar outra; o povo tinha representação política nas Cortes; o Poder executivo do rei medieval era mais condicionado ou restrito do que o Poder do rei absoluto que mais tarde surgiu na Europa a partir das teorias dos ideólogos da Razão de Estado 5  e de Hobbes. O Wohlfahrtsstaat foi uma tendência política, ou se quisermos, uma ideologia, que alguns Estados germânicos seguiram mais e outros menos.

Portanto, é neste contexto de uma Alemanha dividida em várias nacionalidades e com culturas diferenciadas, e em que o absolutismo do Wohlfahrtsstaat se impunha progressivamente na cultura política das elites, que surge o que aqui se chama movimento “pré-romântico”. Um país destruído e destroçado material e psicologicamente por uma guerra que durou trinta anos produz uma percentagem de lunáticos e doentes mentais superior ao normal. Fenómenos culturais e políticos como o de Johann Gottfried Herder devem ser situados neste contexto histórico: não é aceitável que se fale em Herder sem se falar na História concreta da Alemanha depois da Guerra dos Trinta Anos!


“Como toda idealização da Idade Média, isto é uma falácia: a divisão fixa e hereditária de uma minoria de “senhores” e uma maioria de servos da gleba, nada tinha de conveniente para os últimos, embora tenha sido muito conveniente para os primeiros. Todos, sem excepção, que idealizam aqueles tempos, se imaginam como senhores, e não como servos. Caso contrário, jamais idealizariam este passado de horror.”

A diabolização da Idade Média é um fenómeno cultural moderno, burguês e revolucionário. O homem moderno é o único que sente orgulho em viver no seu tempo, mas trata-se de um orgulho estúpido e estupidificante. Nunca, jamais, na História, o ser humano sentiu orgulho de viver no seu tempo, comparando-o com os tempos passados: esse orgulho é uma “originalidade” moderna que revela uma visão hegeliana da História — mesmo quando o autor desse texto entra em contradição e critica Hegel.

Notas

1. No seguimento da Guerra dos Trinta Anos, a Alemanha sofreu uma derrocada política e cultural. Deixou de existir uma Corte e uma Capital, e a guerra consagrou a independência dos príncipes face ao imperador do Sacro Império Romano-Germânico, o que resultou no desmembramento do império em Estados de pequena dimensão; a formação de um Estado nacional ficou bloqueada. Em termos políticos, a Alemanha ficou estilhaçada até ao surgimento do “segundo império” (Zweites Reich) de 1870/71. O massacre permanente da Guerra dos Trinta Anos tornou os alemães melancólicos e possuídos por um doentio desejo de morte. Em algumas regiões da Alemanha, a guerra eliminou 2/3 da população. A memória colectiva não conseguiu superar o trauma da guerra.

2. Desde que Lutero iniciou, de facto, a destruição do Sacro Império Romano-Germânico porque lhe retirou o significado simbólico que tinha na conjuntura cultural católica europeia.

3. Foi a partir de Lutero, e através da Bíblia traduzida para uma das variantes da língua germânica, que se começou a desenhar o que viria a ser mais tarde a língua alemã oficial ou Hochdeutsch.

4. Kant, “Teoria e Prática”, 1793, II, p. 31

5. Botero, Gabriel Naudé, Bodin, Scipione Ammirato, Federico Bonaventura, Ludovico Zuccolo, etc.

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