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Segunda-feira, 14 Janeiro 2013

Hayek, de Mandeville a Hume

Quem ler este texto pode ficar convencido de que o liberalismo clássico foi, no seu tempo, uma espécie de “continuidade da tradição cristã”. Mas não foi. O texto começa por misturar Lord Acton, Locke, e depois Mises e Hayek, como se todos pertencessem à mesma “tradição”.

Dois dos principais inspiradores da doutrina de Hayek foram Mandeville e Hume. Descrever o pensamento de Mandeville é um exercício de mau-gosto. Mandeville foi talvez o primeiro anti-cristão primário e declarado da idade moderna. Por outro lado, quem conhece as ideias de Hume, pode dizer tudo dele excepto que tenha seguido qualquer moralidade que não fosse a dele próprio.


Sobre a propriedade privada, David Hume (que é decisivo para a doutrina de Hayek) também a considerava “o mais sagrado dos direitos”. Porém, Hume também considerava a propriedade como uma ficção: “a propriedade não é natural” — escreveu Hume na Investigação Sobre os Princípios da Moral, pág. 98/99 —: a sua aparente simplicidade dissimulada, como a sua transferência, é uma infinita complicação e repousa sobre as sinuosidades mais delicadas da imaginação em luta com a utilidade (sic).

Na “Dissertação sobre as Paixões”, Hume escreve que “a propriedade é uma espécie de relação entre a pessoa e o objecto” na qual a “imaginação passa naturalmente e facilmente da consideração de um campo à da pessoa ao qual pertence”. E identifica esta relação como “uma espécie de causalidade” que “dá à pessoa a capacidade de produzir alterações sobre o objecto a fim de melhorar ou modificar a sua condição” [Tratado sobre a Natureza Humana,II]. Sendo que “é certo que, nada de real se produzindo pelo tempo, segue-se que a propriedade produzida pela longa duração não é coisa alguma de real nos objectos, mas é gerada pelos sentimentos” [ibidem, III, 112].

Sendo David Hume um conservador na política — por exemplo, foi contra o contrato social e contra “a promessa do político” —, e reconhecendo o direito à propriedade, não deixa de fazer um raciocínio lógico acerca da propriedade — ¡ que já vinha da escolástica católica da Idade Média ! Hume apenas seguiu alguns conceitos da escolástica católica acerca da propriedade.

Podemos dizer, por isso, que a forma como Hayek apresenta a propriedade, é dogmática, e foge à racionalidade de David Hume que a herdou da escolástica. Hayek pegou apenas nos conceitos de “hábito” e de “paixão subjectiva” de David Hume, e “esqueceu” o resto da teoria de Hume.


A ética está para a moral, assim como o musicólogo está para música.

Pequeno ardina, Lisboa, 1930 --- foto de João Martins

Pequeno ardina, Lisboa, 1930 — foto de João Martins

É lógico que a ética e a moral não são a mesma coisa — e não é preciso que venha um Rothbard qualquer afirmar isso. Mas as éticas não são todas idênticas ou equivalentes, assim como há bons e maus musicólogos.

Aquilo que o texto refere como sendo de Rothbard, já tem séculos e já tem barbas. A origem do pensamento de Rothbard está em Bernard de Mandeville — para além de David Hume que, em nome da “superioridade das paixões”, foi o precursor do utilitarismo — o mesmo Mandeville que influenciou o pensamento de Hayek!

Bernard de Mandeville (1670 – 1732) escreveu, por exemplo, que “é tão verdadeiro que o luxo faz a prosperidade de uma nação e que os vícios privados são bens públicos, como é verdadeiro que a castração preserva e fortifica a voz do tenor” [“diálogo com Cleomene”]. Segundo Mandeville, é necessário deixar os pobres sofrer as leis naturais e, sobretudo, regozijarmo-nos com a abundância de crianças pobres com mérito (faz lembrar o discurso “agostiniano” de João César das Neves), educadas na resignação, pois são “o maior e o mais vasto beneficio que provém da sociedade”.

Mandeville, sublinhando a prosperidade natural do vício, torna-se o arauto de facto daquilo que mais tarde, com Adam Smith, se tornará na “mão invisível”. A ilustração da opulência representa muito bem esta prosperidade do “egoísmo bem compreendido”: não é só a busca ansiosa do lucro por parte dos agentes económicos egoístas e calculistas, embora respeitadores das leis civis, que é a fonte de dinamismo económico: são-no também os vícios mais crapulosos e mesmo os crimes. A bebedeira e o deboche fazem avançar o comércio e a indústria, e mesmo os assassinos têm a sua função social e utilidade positiva.

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