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Segunda-feira, 7 Junho 2010

A evolução do gnosticismo até à sua expressão moderna (1)

Filed under: cultura,gnosticismo — O. Braga @ 10:27 pm
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O culto da Mãe-Terra e a característica anticósmica do gnosticismo

Não é possível entender minimamente a complexidade dos fenómenos sociais da nossa contemporaneidade sem ter uma ideia da História das Religiões — e o mesmo acontece com o conhecimento da História : aquilo que entendemos por História foi determinado, em grande parte, pelo processo de evolução das religiões ao longo de milénios.

Mãe-Terra

O denominado “homem moderno”, entendido como espiritualmente embotado, tem a tendência para considerar que “as religiões são coisa do passado”, esquecendo-se de que foi esse passado que determinou o presente e que por isso mantém a sua validade em um processo histórico de diferenciação cultural, por um lado, e que, por outro lado, mesmo no laicismo europeu, as religiões tradicionais não acabaram, a procura pelo transcendental aumentou nas ultimas décadas, e que o laicismo criou religiões políticas que pretendem funcionar como um Ersatz da religião tradicional e transcendental — apenas mudaram de conteúdo.

Um dos problemas é saber quando uma sociedade (ou civilização) evolui e quando (ou se) involui ou retrocede em termos histórico-culturais. Talvez a única forma de aferir esse sentido de evolução ou involução é através de um exercício comparativo dos padrões de religiosidade de uma sociedade em um determinado momento histórico — trata-se de comparar as características gerais da religiosidade de uma sociedade com os padrões recorrentes dos tipos de religiosidade humana constatados ao longo do tempo, e desde que do Homem há memória em documentação arqueológica e escrita.

Por exemplo, em uma sociedade organizada em que existam rituais de sacrifício humano (independentemente daquilo que são as divindades em cada momento histórico) é uma sociedade que se situa — em termos culturais — no neolítico. O que é o aborto institucionalizado senão uma nova forma de sacrifício humano em uma sociedade organizada, cuja divindade assume novos contornos de uma substância antiga? No neolítico, o sacrifício humano em rituais à divindade da Mãe-Terra era ideologicamente orientado pela elite social (os chefes tribais e os curandeiros ou xâmanes), e as classes mais baixas sujeitavam-se às exigências de uma religião orientada para o culto da Mãe-Terra. O que é o naturalismo contemporâneo — expresso em manifestações populares como a de Copenhaga, em Dezembro de 2009 — senão uma nova versão de um antiquíssimo culto da Mãe-Terra ?

Criação cosmogónica divina

A diferença essencial entre o culto da Mãe-Terra e o naturalismo moderno está no grau de sofisticação deste último, devido ao avanço da ciência e da técnica. Isto significa que o grau de evolução religiosa de uma sociedade é independente da ciência e da técnica, ou seja, é possível existir uma assincronia entre a evolução científica e a evolução espiritual em uma sociedade.

Uma das características da religião da Mãe-Terra que marcou todo o neolítico a nível global, é o de uma religiosidade na qual tudo está inserido no ser e no devir individual e social, situado entre o nascimento e a morte do indivíduo — e nada mais do que isto, com algumas excepções localizadas em determinadas e raras culturas do neolítico. É nesta religiosidade do ser individual e do seu devir que se inserem as duas formas conhecidas de sacrifícios humanos no neolítico: o canibalismo — que pretendia ser uma forma de apoderação das forças numinosas de outro ser humano (J. Maringer) — e o sacrifício ritual de seres humanos (principalmente o mais valioso de uma sociedade, que são as crianças) em troca da benevolência (culto da fertilidade da natureza) da divindade da Mãe-Terra.

Culto ctónico do neolítico

Antropólogos e historiadores (como J. Maringer) chamam à atenção para o facto de a cultura do neolítico (que inclui a sub-cultura do megalítico) possuir um cariz essencial de culto da Mãe-Terra, e que só no Calcolítico superior (já perto da descoberta da escrita), a cultura megalítica se serviu dos mesmos sítios de culto da Mãe-Terra (por exemplo, Stonehenge) para processar uma diferenciação religiosa que substituiu o objecto do culto, que era o do feminino ctónico no culto da Mãe-Terra, pelo masculino no culto dos astros (Sol). Podemos dizer, por isso, que o culto da Mãe-Terra subsistiu, em algumas culturas e ao longo do Calcolítico, como um culto anticósmico, ou seja, como uma expressão recessiva da religiosidade ou uma resistência à evolução religiosa e, portanto, uma resistência à evolução da espiritualidade da sociedade em geral.

Uma das características do gnosticismo (tanto o gnosticismo medieval e/ou do princípio da Era cristã dos séculos I a V — como o actual) é a sua essência anticósmica (existem outras características que iremos ver no seguimento desta série de postais) e a influência recessiva do culto da Mãe-Terra que assume novos contornos e conteúdos embora mantendo a sua essência primordial. O que tem variado no gnosticismo, e em todas as épocas, é a forma como essa característica anticósmica se manifesta em função e em relação às formas de religiosidade preponderantes em cada época.

Em um tempo em que o cristianismo se afirmava a ocidente, e onde as religiões superiores (budismo, hinduísmo, confucionismo, taoísmo, judaísmo) estavam já há muito tempo afirmadas no mundo não-ocidental com uma interpretação cósmica da criação, o culto recessivo da Mãe-Terra assumiu a negação da criação do mundo por parte de Deus (posição anti-cosmogonia) como forma de contrariar ideologicamente a tendência de evolução cultural de uma religiosidade ctónica para a uma religiosidade cósmica.

A forma como esta negação gnóstica (ou neo-neolítica) da criação cósmica se manifestou, num tempo de preponderância cultural global de uma religiosidade cosmogónica, foi através de um mimetismo (cópia) dos símbolos das religiões superiores (o Pai, o Filho, o Logos, etc.), mas recusando que a dimensão simbólica dessas religiões tivesse alguma coisa a ver com a cosmogonia de origem divina. Separando a realidade de Deus da realidade do Homem através de uma teologia negativa, o culto recessivo da Mãe-Terra medieval encontrou, assim, uma forma de contrariar a evolução religiosa de uma condição ctónica para uma outra, mais evoluída e de cariz cosmogónico.

PARTE II

6 comentários »

  1. Em diversas tradições o retorno do culto a “mãe-terra” sem dúvida é um retrocesso.

    Julius Evola explica as origens deste equivoco no livro Revuelta Contra El Mundo Moderno:

    Es principalmente bajo el aspecto de figuras femeninas como aparecen las entidades que no solo protegen la costumbre y la ley natural y vengan el sacrilegio y el crimen (de las Normas nórdicas, a las Erinias, a Themis y a Dike) sino que dispensan también el don de la inmortalidad, se debe reconocer precisamente esta forma más alta, que puede cualificarse, de forma general, como demetríaca, relacionada con los castos símbolos de Vírgenes o Madres que conciben sin esposo, o de diosas del crecimiento vegetal ordenado y del cultivo de la tierra, como por ejemplo Ceres (20). La oposición entre el tipo demetríaco y el tipo afrodítico corresponde a la oposición entre la forma pura, transformada y la forma inferior, groseramente telúrica, del culto a la Madre, que resurge en los últimos estadios de descomposición y sensualización de la civilización de la edad de plata.

    Oposición idéntica a la que existe, en las tradiciones extremo orientales, entre la “Tierra Pura” de la “Mujer de Occidente” y el reino subterráneo de Ema O, y en las tradiciones helénicas, entre el símbolo de Atenea y el de las Górgonas que combaten. Es la espiritualidad demetríaca, pura y serena como la luz lunar, quien define tipológicamente la Edad de Plata, y verosímilmente, el ciclo de la primera civilización atlántica. Históricamente, no tiene sin embargo nada de primordial; es ya un producto de transformación (21). Allí donde el símbolo se convirtió en realidad, se afirmaron formas de ginecocracia efectiva, de las que pueden encontrarse huellas en el substrato más arcaico de numerosas civilizaciones (22). Al igual que las hojas no nacen una de otra, sino del tronco, así mismo, si bien es el hombre quien suscita la vida, esta es efectivamente dada por la madre: tal es la premisa. No es el hijo quien perpetúa la raza; tiene una existencia puramente individual limitada a la duración de su vida terrestre.

    Em outro trecho, a similaridade destes cultos a mãe-terra com o comunismo:

    Por otra parte, el pretendido “derecho natural”, la promiscuidad comunista propia de muchas sociedades salvajes, sobre todo del Sur (Africa, Polinesia) y hasta el mir eslavo, todo esto nos lleva casi siempre al marco característico de la “civilización de la Madre”, incluso aquí donde no hubo matriarcado y donde se trató menos de “mistovariaciones” de la civilización boreal primordial, que de restos de telurismo inherentes a razas inferiores autóctonas. El tema comunista, unido a la idea de una sociedad que ignora las guerras, que es libre y armoniosa, figura por otra parte, fuera del relato de platónico relativo a la Atlántida de los orígenes, en diversas descripciones de las primeras edades, comprendida la edad de oro. En lo que concierne a esta última existe sin embargo una confusión debida a la substitución de un recuerdo reciente por otro mucho más lejano. El tema “lunar” de la paz y de la comunidad, en el sentido naturalista, no tiene nada que ver con los temas que, según testimonios múltiples, caracterizan, como se ha visto, la primera edad (25).

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    Comentar por shâmtia ayômide — Terça-feira, 8 Junho 2010 @ 1:58 am | Responder

  2. Segundo Julius Evola, é comum em todas as tradições relatos sobre uma idade primordial, uma “idade de ouro”, no ocidente esse mito é o de Atlântida, e essa época é marcada por características fortemente “solares”, masculinas.

    Uma substituição de um relato mais antigo por uma mais recente foi a origem da confusão sobre Atlântida, e a origem de mitos sobre uma “sociedade comunista”.

    Um dos maiores propagadores desses mitos de sociedades “matriarcais”, sem guerras e sem propriedade privada foi Engels, que travestiu isso com a pseudo-ciência marxista.

    A consequência posterior do culto a Mãe-Terra é a sensação subjetiva comum de que todos são filhos da mesma mãe e portanto “irmãos de sangue”.

    Outra característica desse retrocesso, segundo Julius Evola, é o culto a sensualidade feminina.

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    Comentar por shâmtia ayômide — Terça-feira, 8 Junho 2010 @ 2:04 am | Responder

  3. Não é por acaso que esquerdistas costumam atacar a família:

    No mesmo livro, Julius Evola explica que a consequência do culto a mãe-terra, é a idéia de que todos são filhos da mesma mãe, portanto a noção de família nuclear desaparece:
    .
    (…)”De aquí deriva como consecuencia que la mujer, en tanto que madre, se encuentre en el centro y en la base del derecho de la gens o de la familia y que la transmisión se haga por línea femenina(23). Y si de la familia se pasa al grupo social, se llega a las estructuras de tipo colectivista y comunista: cuando se invoca la unidad de origen y el principio materno, del que todo el mundo desciende de igual manera, la aequitas deviene aequalitas, relaciones de fraternidad universal y de igualdad se establecen expontáneamente, se afirma una simpatía que no conoce límites ni diferencias, una tendencia a poner en común todo lo que se posee y que, por lo demás, se ha recibido como un regalo de la Madre Tierra. Se vuelve a encontrar aquí un eco persistente y característico de este tema en las fiestas que, incluso hasta una época relativamente reciente, celebraban las diosas telúricas y el retorno de los hombres a la gran Madre de la Vida y donde se manifestaba la reminiscencia de un elemento orgiástico propio de las formas meridionales más bajas; fiestas en las que todos los hombres se sentían libres e iguales, donde las divisiones de castas y de clases ya no contaban y podían incluso ser superadas, en medio de una licenciosidad general y un gusto por la promiscuidade”(…)

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    Comentar por shâmtia ayômide — Terça-feira, 8 Junho 2010 @ 2:31 am | Responder

    • Só uma nota :

      A “Idade de Ouro” de Julius Evola não é a mesma “Idade de Ouro” de Karl Jaspers (para que não haja confusão).

      As sociedades matriarcais ainda existiam em África há pouco mais de 40 anos. A ideia de que as sociedades matriarcais eram “isentas de propriedade privada” é um mito. Ainda hoje, a sociedade israelita conserva a linearidade da família através da mulher. Se um homem, que não seja judeu, casa com uma judia, os seus filhos são automaticamente judeus; se uma mulher, que não seja judia, casa com um judeu, os seus filhos não são automaticamente judeus. Os judeus conservam ainda hoje a sua índole matriarcal — e não há povo no mundo tão agarrado à propriedade privada como o judeu.

      O problema do culto feminino versus culto masculino, na minha opinião, está na “diferenciação cultural” e não tanto por ser feminino ou masculino — conforme acentuado por Julius Evola por razões idiossincráticas. O conceito de “diferenciação cultural” não é fácil de ser apreendido e de ser explicado. Vou tentar fazer isso no próximo postal da série.

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      Comentar por O. Braga — Terça-feira, 8 Junho 2010 @ 10:58 am | Responder

  4. grato pelos esclarecimentos, irei acompanhar as demais postagens.

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    Comentar por shâmtia ayômide — Quarta-feira, 9 Junho 2010 @ 1:27 am | Responder

  5. […] Parte I falamos do culto da Mãe-Terra e na Parte II da noção de “diferenciação cultural”. Vimos […]

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    Pingback por A evolução do gnosticismo até à sua expressão moderna (3) « perspectivas — Quinta-feira, 10 Junho 2010 @ 7:01 am | Responder


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