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Quarta-feira, 31 Julho 2013

O último livro de Luís Portela, capítulo IV

Filed under: filosofia — O. Braga @ 4:44 pm
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(A série de verbetes acerca do livro de Luís Portela com o título “Ser Espiritual: Da Evidência à Ciência” pode ser lida na categoria (tag) “Luís Portela”.)

O quarto capítulo do referido livro de Luís Portela, com o título “Pelo esclarecimento”, tem como objecto o “conhecimento”.

O conhecimento é um dos objectos da filosofia que continua a ser estudado até hoje – e só por isso verificamos o grau de complexidade da abordagem do tema do “conhecimento”. Porém, o que nos interessa aqui e agora é analisar alguns conceitos acerca do conhecimento exarados neste capítulo de Luís Portela. Desde logo, o título: “Pelo Esclarecimento”, revela a sua subsunção semântica e ideológica a partir do conceito de Aufklärung proveniente do Iluminismo.

O que Luís Portela faz é pegar no conceito de Aufklärung, juntar-lhe a filosofia antiga pertencente àquilo a que Karl Jaspers chamou de “período axial” (entre 800 e 400 a.C), e dessa mistura resulta uma tentativa de branquear o desastre humanitário e civilizacional que o Iluminismo nos trouxe em nome do “progresso”. Por exemplo, morreram mais pessoas vítimas das guerras, só no século XX, do que em todas as guerras que aconteceram desde o século III a.C até ao século XIX d.C.. Se o conceito de Aufklärung significa “evolução espiritual da humanidade”, fico, então, sem saber o que é “evolução espiritual”.

O livro de Luís Portela parte de uma boa intenção: a interpretação axiológica e cosmológica da existência humana que lhe dá o sentido da vida. Mas a tentativa de simplificar conceitos, por um lado, e uma interpretação historicista (ver Historicismo) e hegeliana (ver imanência ) da existência humana é o corolário do desiderato do movimento revolucionário que parece pretender conhecer o futuro. Nunca é demais recordar um pequena e simples frase de Elsa Triolet: « O futuro não é uma melhoria do presente. É outra coisa. »

Esta frase de Elsa Triolet daria um bom ponto de partida para escrever, pelo menos, um livro inteiro com muitas páginas. O problema é que vivemos num mundo em que a visibilidade pública (a mitologia moderna) de pessoas como Luís Portela, por exemplo, permite que se publiquem livros que, muitas vezes partindo de uma boa intenção, induzem os leitores em erro ao dar uma imagem da História e da “evolução” como uma eterna melhoria do presente em direcção inexorável ao Absoluto (Hegel) e/ou ao paraíso na Terra (Marx), como se o progresso fosse uma lei da natureza. Essa visibilidade pública de Luís Portela dá-lhe mais responsabilidade acerca daquilo que escreve.

Luís Portela escreve o seguinte na página 27:

“A análise serena do percurso terreno de seres como Krishna, Moisés, Lao Tsé, Zaratustra, Buda, Confúcio, Sócrates, Aristóteles, Cícero e Jesus permite-nos conceber o esforço que cada um deles terá feito no sentido do esclarecimento espiritual da Humanidade.
(…)
Curiosamente, não se lhes conhece a intenção de formar agrupamentos religiosos ou doutrinários.”

A ideia expressa no segundo parágrafo da transcrição é falsa, e revela um preconceito pós-moderno que não se escora na documentação histórica que dispomos. Por exemplo, em Platão, a sua Academia revelava expressamente a intenção de fundar um agrupamento doutrinário; Sócrates morreu acusado de influenciar ideologicamente a juventude de Atenas, no sentido da formação de um grupo de seguidores; Jesus Cristo, para além do seu grupo de apóstolos, deu instruções ao apóstolo Pedro acerca daquilo que pretendia depois da sua morte. E o mesmo se aplica, mais ou menos, a todas as outras figuras históricas citadas.

Por outro lado, Luís Portela, coloca todas essas personalidades por ele referidas em um mesmo nível, comparando, por exemplo, Cícero e Jesus Cristo. Este tipo de abordagem histórica é abominável, seja por ignorância, seja por relativismo. Fico admirado como Luís Portela não mencionou o nome de Maomé na lista, cujo Alcorão (alegadamente da sua autoria) incita sistematicamente à guerra e ao assassínio. Este “nivelamento por baixo” é típico da Idade Moderna – aquilo a que Tocqueville chamou de “paixão moderna pela igualdade”: a paixão moderna pela igualdade é de tal forma obtusa que a bitola passou a ser o mais rasteiro e/ou o mais básico.

Na página 28, Luís Portela escreve o seguinte:

“Assim, por um lado, foi possível a Humanidade ir evoluindo da adoração da Natureza (animismo) para a adoração de entidades divinas diversas (politeísmo) e daí para a adoração de uma só entidade (monoteísmo), embora com nomes diversos: Jeová, Alá, Deus, etc..

Mais recentemente, a própria explicação científica de fenómenos naturais, que eram inexplicáveis para os nossos antepassados, contribuiu para a evolução do fanatismo subserviente para a tolerância racional, no sentido da independência espiritual do fenómeno adulatório.”

Este trecho de Luís Portela revela alguns factos: desde logo, o facto de que provavelmente ele nunca leu Mircea Eliade e, por isso, desconhece o conceito de “diferenciação cultural”. Mircea Eliade demonstrou como a “diferenciação cultural” não significa que os fundamentos da natureza humana sejam de qualquer modo alterados com o processo do devir histórico. Aquilo a que Luís Portela chama, neste trecho, de “evolução”, é de facto uma série de “diferenciações culturais” que se operam sempre a nível colectivo com o devir na História.

Como acontece em tudo, essas diferenciações culturais podem ser negativas ou positivas. O que distingue uma qualquer diferenciação cultural de uma outra, é o sentido ético e estético que essa diferenciação cultural imprime a uma determinada sociedade. Nunca é demais lembrar que enquanto os chineses viviam no luxo e no fausto, rodeados pelo desenvolvimento da Técnica, os gregos austeros, muitas vezes quase esfarrapados, fundavam a ciência. Ou seja, uma diferenciação cultural apenas baseada no aperfeiçoamento dos bens materiais – na aplicação da Técnica – não é necessariamente positiva.

Depois, e em bom rigor, a ciência não “explica” nada. A ciência “descreve o funcionamento”, por assim dizer, dos fenómenos naturais. A ciência faz uma narrativa baseada em factos – narrativa que muitas vezes se revela falsa – acerca dos fenómenos naturais.

O que acontece é que o verbo “explicar” sofreu, com a modernidade, uma alteração semântica abusiva. Explicar é esclarecer a causa de um determinado fenómeno. Ora, a ciência não pode esclarecer a causa de qualquer fenómeno sem entrar pela metafísica adentro, e mesmo assim não se vê nunca livre da crença. Como escreveu o físico Roland Omnès, “a fé do cientista é maior que existe, porque é inconfessável”.

O critério que norteia a ciência é o de que “só tem significado aquilo que é verificado” – ou seja, segundo a ciência, tudo aquilo que não é passível de ser verificado não tem significado senão, em alguns casos, como uma mera hipótese . Porém, esta proposição (“o critério da significação é a verificação”) não é, ela própria, verificável. Isto significa que a ciência parte de uma espécie de dogma que separa o seu fundamento da própria metafísica, e em relação à qual a ciência está intrinsecamente ligada, – embora a ciência negue o valor da metafísica.

Esta ideia de Luís Portela segundo a qual “a ciência explica os fenómenos naturais” escora-se em uma diferenciação cultural negativa da modernidade, que inclui a ideia segundo a qual “o homem moderno tem orgulho de viver na sua época” – o que nunca tinha acontecido antes na História. Nunca, na História, qualquer ser humano teve orgulho de viver na sua época, com excepção do Homem moderno. Este orgulho de se viver em uma determinada época advém do desenvolvimento da Técnica e de uma certa mentalidade prometaica.

Luís Portela cita Buda, na página 28: “Bem-aventurados os que sabem, e cujo conhecimento é livre de ilusões e superstições”. Para Luís Portela, esta frase de Buda é o paradigma do saber, e por isso, da ciência.

Porém, em rigor, a ciência é, ela própria, baseada em crenças e em superstições! – embora em crenças e superstições de uma índole diferente das existentes antes do Iluminismo: mantém-se em vigor, hoje como desde o aparecimento do homo sapiens sapiens, aquilo a que Kant chamou o “escândalo da razão”, que consiste no facto de não ser possível encontrar uma prova concludente para uma evidência tão simples como a existência do mundo exterior independente de nós próprios. Karl Popper, na sua habitual ambiguidade diplomática e para não ferir as susceptibilidades do mundo moderno, foi um pouco mais comedido do que Kant: dizia Karl Popper que “o mundo exterior é uma hipótese de trabalho para a ciência da natureza”.

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