perspectivas

Quinta-feira, 19 Julho 2012

Quando se perde um debate, entra-se na falácia lógica

Há gente que estuda mas não raciocina.

Encorna a matéria, e depois critica aqueles que não citam as fontes de onde beberam o conhecimento, talvez porque considerem as fontes do seu encornanço como as únicas legítimas.

A lógica é mais ou menos esta: “aquilo que eu encornei, num qualquer cursinho de biologia — provavelmente de Bolonha, semelhante àquele que licenciou Miguel Relvas, quiçá com nota final de 10 valores —, dispensa a citação de fontes; aquilo que os outros encornam mas que seja diferente daquilo que eu encornei, já não dispensa a citação de fontes”.

E há outro argumento falacioso in force: “não interessa saber se aquilo que alguém diz é verdadeiro se tem lógica: apenas interessa saber quem afirma aquilo que pode ser considerado verdadeiro, por mais ilógico que seja. Não interessa a autoridade de facto, mas apenas e só a putativa autoridade de direito.”

Estamos perante um dogma em nome da ciência.


E depois confunde-se a herança genética [por exemplo, a miopia], ou uma malformação congénita qualquer de que ainda não haja uma explicação causal, por um lado, com a vontade humana ou com os condicionalismos psicológicos que decorrem essencialmente do tipo de educação, do desenvolvimento extra-uterino da pessoa, e do meio-ambiente e das culturas intelectuais e antropológicas da pessoa em questão, por outro lado: coloca-se no mesmo plano lógico, por exemplo, a miopia e a vontade de deixar de fumar. É obra!
Faz lembrar a estória do assassínio em série: “Dr. Juiz! A culpa não foi minha! A culpa é dos meus genes!” — já não há pachorra para aturar gente desta!


A seguir, confunde as anomalias, possíveis no sistema de coagulação — por exemplo, a hemofilia —, com o sistema de coagulação entendido em si mesmo. Dou um exemplo para ilustrar a estupidez do argumento.

A partir da verificação empírica da atracção mútua dos corpos, a ciência enunciou a lei da gravidade mediante a abstracção a partir dos próprios dados empíricos verificados. É assim que a lei da gravidade, por princípio, é válida no planeta Terra como é válida em qualquer ponto do universo.
Mas alguém me pode dizer: “O Orlando está errado, porque num buraco negro a lei da gravidade não é válida”. Porém, acontece que num buraco negro nenhuma lei da ciência é válida, incluindo a lei da gravidade: na singularidade de um buraco negro, todas as leis da física se anulam.

Trata-se, portanto, de um argumento falacioso — “homem de palha” — e mesmo pouco inteligente, porque confunde o funcionamento normal e ideal de um sistema, por um lado, com a possibilidade de uma anomalia desse mesmo sistema, por outro lado. O argumento é um “tiro ao lado”.

Quando a ciência estuda o sistema de coagulação sanguínea, utiliza — ou deve utilizar — o mesmo método que utilizou para enunciar a lei da gravidade: (1) verificação empírica [in loco]; (2) abstracção, para uma teoria; e (3) depois conferir contínua e sistematicamente se a teoria se adequa, de facto, aos dados empíricos verificados não só agora mas também no futuro. E deste método surge a lei, que pode ter excepções [como, por exemplo, a excepção do buraco negro, no que diz respeito à lei da gravidade]. Exactamente porque tem excepções é que a lei é científica.

Portanto, não são as anomalias ou as excepções que um sistema possa ter — por razões diversas — que coloca em causa a lei científica que gere ou preside a esse sistema.

Se, por exemplo, no processo de replicação genética — de um ou mais seres humanos — se gera uma determinada anomalia que influencie o comportamento saudável e normal do sistema de coagulação sanguínea de um indivíduo ou de um determinado grupo de indivíduos, não é legítimo que nos agarremos a essa anomalia como argumento para dizer que “não existe um sistema-padrão de coagulação sanguínea”.

Ca Gand’a Treta contra-ciência!


Quando se chega a este tipo de argumentação, o debate acabou, porque quem argumenta assim perdeu o debate.

Adenda: Todos os postais desta série podem ser lidos na categoria Ca Gand’a Treta!

A ler: Os livros heréticos que não se publicam em Portugal

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