perspectivas

Sábado, 10 Novembro 2007

A especialização “com antolhos” é positiva?

Filed under: Política,Sociedade — O. Braga @ 7:59 pm
Tags: , , , , ,

Será possível mudar o actual sistema de ensino tendente a uma especialização exclusiva, para um ensino que dê ao cidadão um conhecimento global, sem se perder a vantagem da especialização? Eu penso que sim, se muitos dos fundamentos do nosso ensino e da organização da sociedade forem modificados.

Vivemos na época da especialização, que se iniciou com a revolução industrial. Quando Marx se referiu à “divisão do trabalho”, falava naquilo que é hoje a “especialização”. Por razões diferentes, vou concordando com Marx sobre alguma influência negativa que a especialização trouxe à nossa sociedade. Se a ciência avançou tanto devido à especialização, imaginem o que poderia ter avançado se tivesse tido em atenção as áreas que até agora são consideradas como sendo “fora da sua área”. Não podemos esquecer que as grandes descobertas científicas são fruto de investigação em áreas diferentes da própria ciência.

A especialização parte do princípio de que um cidadão precisa de 5 ou 6 anos para se formar — agora, com a treta de Bolonha, até é menos tempo. Após este período de tempo, a sociedade considera o cidadão como estando apto para dar o seu pleno contributo, e desresponsabiliza-se dele. O cidadão tira o cursinho, passa a trabalhar 8 a 12 horas por dia, quer namorar, acaba por fazer um filho ou outro, arranja um tempinho a espaços para conviver com amigos, e com o passar do tempo, transforma-se num analfabeto funcional — e a principal razão porque isso acontece é porque não ganhou uma visão global do mundo, e quando o mundo muda, muda em tudo e não só na área em que se especializou. Com o passar do tempo e com a mudança, o cidadão deixa de ter referências na ligação da sua própria área de conhecimento com o Conhecimento Total.
Quando vemos pessoas licenciadas com tão baixo nível de conhecimento global, constatámos o resultado da especialização. O problema não é só local; vejam o nível cultural dos americanos e chorem baba e ranho.

A solução passa pelo alargamento do período universitário, dividindo-o em dois estádios: o Ensino Universitário Profissional, após os tais 3 ou 4 anos, e o Ensino Universitário Complementar, que se prolongaria por um período adicional de 3 anos. Com a conclusão do Ensino Universitário Profissional, o cidadão estaria apto para exercer tecnicamente uma profissão, mas estaria tão “especializado” que estaria inapto para sequer iniciar a sua evolução contínua na carreira profissional, que envolve componentes multidisciplinares. Por exemplo, um licenciado em filosofia sabe pouco ou nada de matemática; deveria ser parte integrante da sua formação, após o Ensino Universitário Profissional, a frequência do Ensino Universitário Complementar, onde a matemática (a física, a química, etc.) fosse ministrada em curriculum incipiente e correspondente à soma da matéria do 11º e 12º anos com o essencial dos dois primeiros anos da universidade. Após os 3 anos de Ensino Universitário Complementar, o licenciado profissionalizado em filosofia teria uma formação mais completa e abrangente, sendo muitíssimo mais útil à sociedade e a si próprio.

Um licenciado em matemática ou em bioquímica sabe muito pouco de filosofia ou de Direito; naturalmente que não se pretende que um bioquímico seja um advogado, mas seria muito melhor para a Justiça se a maioria das pessoas tivesse uma ideia concisa e necessária sobre o que é o Direito e sobre as leis — o próprio recurso ao serviço dos advogados tornar-se-ia coisa normal e corriqueira, o que levaria mais profissionais do Direito para o mercado de trabalho. O problema seria o funcionamento dos tribunais, mas isso é outra estória.

Posso imaginar o curriculum obrigatório do Ensino Universitário Complementar de 3 anos para um licenciado em Filosofia: Inglês I, II, e III, Matemática I, II, e III (11º, 12º e 1º ano da Uni); Física (ibidem), Química (Ib.), Geografia I, Antropologia I, Psicologia I, II e III, Introdução ao Direito I, II e III, Noções de Direito Internacional I, Economia I e II, Bioquímica I, e Biologia I, II e III.
Para um licenciado em matemática, teríamos Língua Portuguesa I, II, e III, Literaturas Modernas I, II e III, Inglês I, II, e III, História da Filosofia I, II e III, História I, II e III (portuguesa e universal), Geografia I, Antropologia I, Introdução ao Direito I, II e III, Psicologia I, II e III, Noções de Direito Internacional I, Economia I e II, Bioquímica I, e Biologia I, II e III.
Como cadeiras optativas (pelo menos uma, à escolha do aluno) em geral, teríamos (entre outras) Latim, Grego Antigo, Francês, Alemão, Espanhol, Chinês, Russo e Árabe.

O Ensino Universitário Complementar deveria ser incentivado pelo Estado, mas não obrigatório para quem acabe a formação profissional. Para isso, o Estado teria que impôr uma legislação laboral com contrapartidas para o patrão, que permitisse por uma questão de tempo, ao licenciado profissional trabalhar e frequentar o Ensino Universitário Complementar, sendo que seria exigível ao licenciado profissional o aproveitamento necessário no Ensino Universitário Complementar para continuar a usufruir de um horário de trabalho especial resultante do apoio do Estado. A influência do Estado no processo seria também o da valorização e o do prestígio institucional a conceder a quem acabasse o Ensino Universitário Complementar. No fundo, o ensino universitário passaria a ter 8 anos, em vez dos 3 anos de “Bolonha” + 2, independentemente da formação contínua na sua área restrita que o cidadão optasse por ter ao longo do resto da sua vida. Em suma, os 8 anos de Uni não seriam obrigatórios, mas constituiriam uma vantagem para o trabalhador e seriam valorizados pelos empregadores e pela sociedade em geral.

Naturalmente que deveria existir um consenso alargado em toda a sociedade para que isto acontecesse, mas tendo em conta o nível dos patrões que temos, e da maneira como as leis laborais estão a evoluir com o beneplácito de Sócrates, esqueçam o que escrevi. Mesmo com Sócrates, sonhar não custa nem paga imposto.

Deixe um Comentário »

Ainda sem comentários.

RSS feed for comments on this post. TrackBack URI

AVISO: os comentários escritos segundo o AO serão corrigidos para português.