perspectivas

Sábado, 29 Setembro 2007

O Ângulo Morto da Sociedade

Filed under: Sociedade — O. Braga @ 11:52 am
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Pedro Alpiarça era um profissional do teatro e do espectáculo que teve o azar de ser apanhado desprevenido no ângulo morto da nossa sociedade. O problema é que o “azar” de Pedro Alpiarça começa a ser hoje a regra, e não a excepção.

Nos retrovisores dos nossos automóveis existe um ângulo morto que nos limita a visibilidade de forma a não nos permitir manobrar o carro com segurança e à-vontade. Por analogia, muitos portugueses entre os 45 anos e a idade da reforma (65 anos) vivem num ângulo morto da vida em sociedade; a sociedade torna-os invisíveis.
Pedro Alpiarça foi um entre as centenas de milhares de portugueses que vivem no ângulo morto da nossa sociedade, um ângulo do espelho social que não permite identificar o ser humano por detrás dos números da economia e dos preconceitos etários alimentados pelo hedonismo mediático.

Actor desde sempre e desempregado há mais de um ano, Pedro Alpiarça viveu as dificuldades extremas de sobrevivência do dia-a-dia que o desemprego traz, para além do drama psicológico que a falta de trabalho implica – a diminuição drástica dos índices pessoais de auto-confiança e de amor-próprio que podem levar um ser humano ao desespero. Todos os dias, o Pedro deslocava-se ao seu antigo local de trabalho e colaborava com os ex-colegas de uma forma gratuita, como quem pede só uma única simples esmola: trabalho.

Pedro Alpiarça não tinha subsídio de desemprego, não tinha ainda direito à reforma, já não tinha idade para ter ajuda de pai ou de mãe, a sua dignidade pessoal não lhe permitia pedir mais dinheiro aos amigos; tinha 48 anos quando se lançou do 5º andar de um hospital público em Lisboa, depois de lá lhe terem negado ajuda psiquiátrica.

É este o “socialismo de rosto humano”? Bem, só se o seu rosto estiver coberto por uma burka socrática preceituada por iluminados almuadens mediáticos que nos invocam diariamente para a celebração das qualidades do anatocismo institucionalizado.
Ou será que os nossos políticos pensam que o ângulo morto da nossa sociedade pode ser uma solução para a insolvência da Segurança Social? Senão vejamos:

Sem subsídio de desemprego, sem trabalho e sem reforma, muitos portugueses que vivem no ângulo morto da sociedade, fazem um favor ao Estado quando se suicidam, não contribuindo para a sobrecarga do erário público quando chegarem à idade da reforma.
Qualquer dia não há reformados; uns ficam pelo caminho antes da reforma, vítimas do ângulo morto do espelho deformado pela sociedade que temos, e os outros (não tarda muito) serão eutanasiados para não darem despesa. Vamos voltar às expectativas de tempo de vida do século 19.

Entretanto, existirão sempre muitos (e filhos-de-puta) sinecuristas estatais de manga-de-alpaca que se abotoam com o dinheiro dos nossos impostos – que não é coisa pouca – para comprarem o último modelo com espelho panorâmico sem ângulos mortos (com estacionamento garantido, a qualquer momento e situação de precisão, numa garagem privativa de um qualquer Instituto do Estado criado para o efeito com o nosso dinheirinho), com alarme XPTO de aproximação à retaguarda e visionamento vídeo interior para estacionamento, com uma reforma milionária pré-garantida e outras prebendas de Estado – pese nunca terem trabalhado no duro nas suas vidas.

Nota: não me incomodam os políticos e os poderosos; como disse o escritor Luís Pacheco (acerca dos jovens escritores, em entrevista à RTP), “que sejam felizes e puta que os pariu”.
Incomoda-me, e muito, saber que um concidadão se suicidou por não ter meio de subsistência, e por lhe ter sido sonegada a assistência médica psicológica que deveria ser garantida pelos nossos impostos. Incomoda-me até à náusea; e casos destes são cada vez mais notícia neste país.

3 comentários »

  1. esxactamente.

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    Comentar por rui — Sábado, 29 Setembro 2007 @ 2:31 pm | Responder

  2. Julgo que o Pedro Alpiarça te está a aplaudir. E eu também só posso bater-te palmas.

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    Comentar por maria árvore — Segunda-feira, 1 Outubro 2007 @ 10:28 pm | Responder

  3. Bravo
    Para quando o reconhecimendo pelo estado dos itinerantes do espectaculo.
    Sou eu de convicção de esquerda, tenho hoje vergonha depois do mu amigo Pedro ter partido.
    Um grito ao fundo do tunel.
    Há cervca de 20 anos morreu Mario Viegas e continuamos com este desrespeito pelos nossos actores.

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    Comentar por Miguel — Quinta-feira, 4 Outubro 2007 @ 10:11 pm | Responder


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