perspectivas

Domingo, 4 Março 2007

Os terroristas da consciência

Filed under: Sociedade — O. Braga @ 6:08 pm

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O Sem-abrigo não é um simples pedinte; é um obstinado. Conheci um caso de um Sem-abrigo que habitava um viaduto ali perto da Faculdade de Letras do Porto. Todos os dias o via, enfarruscado, barba e cabelo à Marx, com os seus afazeres espalhados pela relva húmida. Ali se mantinha, inamovível, como um monumento em praça pública a uma qualquer figura histórica. Soube que a esse homem lhe foi oferecida a possibilidade de pernoitar em cama celular numa instituição qualquer do Porto; ele não aceitou. E sei que mesmo a comida era aceite por ele porque a fome não permite contemplações filosóficas. De um dia para outro, deixei de o ver; mas confesso que aquele homem me intrigou, e me chamou à atenção muito mais que a maioria das figuras públicas do nosso mundo social.

Um sem-abrigo é, na maioria dos casos, um revoltado, alguém que desde cedo não se sentiu identificado e integrado na sociedade. Ninguém se torna um Sem-abrigo de um momento para o outro; uma pessoa “normal” pode empobrecer, andar na penúria, mas nem por isso deixaria de aceitar uma cama em cela escura; o Sem-abrigo é demasiado orgulhoso para aceitar aquilo que pode dispensar. E se pudesse deixar de comer, concerteza que o faria.

As características do Sem-abrigo são reveladas desde muito cedo, e a miséria material é uma consequência da sua personalidade, cujo estereótipo a sociedade marginalizou, e não é propriamente a míngua de recursos materiais a causa da sua situação.
Integrar um mendigo na sociedade pode ser conseguido com simples ajuda económica; integrar um sem-abrigo na sociedade, um renegado social da pior estirpe, é tarefa que não requer somente esmola. O Sem-abrigo aceita a esmola com um misto de desdém por quem a dá e com o reconhecimento da força maior que o obriga a pedi-la.

A injustiça de uma sociedade mede-se pelo número de Sem-abrigos em circulação, muito mais do que pelo números de simples pedintes e pessoas a tentarem “desenrascar” a vida. O Sem-abrigo não procura “desenrascar” nada, porque acha, no âmago da sua idiossincrasia, que ou tem direitos, ou não tem; e se os não tem porque a sociedade não lhe propicia as condições para os usufruir, não tem que assumir obrigações que a sociedade lhe exige. O Sem-abrigo é um fundamentalista dos direitos de cidadania, recusa-se a negociar o seu conceito de dignidade, mesmo que tenha que passar por uma vida “indigna” aos olhos da sociedade.

O Sem-abrigo mantém, na maior parte das vezes, uma querela filosófica com a sociedade; pode até ser analfabeto e nem saber que a filosofia se aprende na escola; pode até nem saber o que é isso de “filosofia”; mas o que ele também não sabe é que muitas vezes, quem ensina filosofia nas escolas, não se dá conta adequada que esta é intrínseca ao Homem e dele nasce, e que a maioria dos grandes filósofos foram Sem-abrigos culturais, nas épocas em que viveram.

O Sem-abrigo endémico é pior terrorista ideológico que uma sociedade pode ter. É uma ameaça à segurança e estabilidade emocional colectiva, um agente que promove a instabilidade das nossas consciências; é o sinal vermelho no painel de instrumentos que monitoriza a sociedade. O pior, é que só há uma de duas maneiras de acabar com eles: ou eliminando-os fisicamente, fuzilando-os após julgamento sumário, na sua qualidade de terroristas políticos, ou dando-lhes direitos de cidadania antes que esbocemos qualquer intenção de lhes exigir obrigações. E quem é que está para isto?

2 comentários »

  1. Absolutamente! Aliás, o mesmo papel de terroristas da consciência (para os tios) desempenham também o AJJ e o Salazar. São pedras nos sapatos dos tios, como é que esses “gajos” podem levar uma vida sem ligar à tintura?
    Essa foto é do JSS?

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    Comentar por Henrique — Segunda-feira, 5 Março 2007 @ 6:59 am | Responder

  2. conheço um que nao para. Chama-se costinha. Há 4 anos que faz o caminho de santiago sem parar. A este nao o deixam pernoitar nos albergues… quanto aos outros…

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    Comentar por r.filgueira — Segunda-feira, 5 Março 2007 @ 12:16 pm | Responder


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