A África portuguesa era assim. Ao contrário de outras zonas colonizadas recentemente por países europeus, na África portuguesa havia marcas de uma presença secular, de uma presença amorável onde se notava sempre a preocupação de refazer os ambientes saudosamente deixados no reino longínquo.
«Um dos encantos da África era o de ver a face da terra a transformar-se de dia para dia pelo esforço inteligente do homem. Rompiam, no meio do mato, fazendas e plantações cuidadosamente ordenadas. Revolvia-se em minas o subsolo. Surgiam indústrias aqui e acolá. A faia branca ou negra das estradas cortava a imensidade do sertão. E onde só havia algumas pobres palhotas brotavam cidades como por milagre.
Nampula, que mais tarde se converteu num grande centro populacional, era em 1945 uma idade recente onde, não sei porquê, tinha sido implantada a capital da, ao tempo, província do Niassa, pois ficava no limite sul dela.
Nascera de um acampamento: por ocasião da primeira grande guerra tinham sido ali aquarteladas algumas unidades e ficou depois nos locais uma guarnição de infantaria e artilharia. Posteriormente, a construção do caminho de ferro que do litoral devia atingir (como depois atingiu) a região do Lago Niassa, fez com que em Nampula, um tanto distanciados do bairro militar, se erguessem os estaleiros, e, quando a exploração ferroviária pôde começar, estabeleceu-se junto da estação um centro de manutenção de material e de rendição de pessoal, donde a necessidade de oficinas, armazéns, dormitórios, o clube ferroviário, as casas para os empregados fixos. Logo o comércio se foi estabelecendo entre os dois bairros. E depois, capital de província e sede de diocese, os vazios foram-se enchendo com edifícios públicos e residências. Tudo novinho em folha e às vezes com certo ar de provisório.
Em contraste, que delícia aquela velha cidade de Moçambique, na ilha que deu o nome ao território e que foi dele capital política até 1897! Que comovente aquele conjunto venerando da fortaleza que servia, já no século de quinhentos, de apoio à navegação das naus da carreira da Índia, com a igreja onde estão sepultados soldados e marinheiros da gesta portuguesa do Oriente! Que encanto o daquelas ruas marginadas de casas construídas com pedras levadas do reino e onde se cruzam vultos de várias raças e religiões, num primeiro encontro de África com o Oriente! Que emoção a de percorrer os lugares onde poetou Camões, onde S. Francisco Xavier rezou, onde D. João de Castro estudou, e tanta gente humilde passou levando para a Índia seus sonhos e ambições ou de lá trazendo riquezas e desconsolos!
Padrão da presença portuguesa na costa oriental africana há quase 500 anos, a ilha de Moçambique constitui uma relíquia histórica, uma jóia arquitectónica, um valor humano inestimável. Entrei comovido no Palácio onde tantos governadores residiram, um palácio do estilo português das moradias nobres, com rés-do-chão e andar principal, este abrindo-se em salões magníficos de recepção. Lá dormi entre sombras de heróis e de governadores de outros tempos. E às primeiras horas da manhã fui acordado ao som da suave melopeia entoada por um coro de muitas vozes femininas com a preguiçosa doçura própria dos cantos africanos. Corri à janela. Lá em baixo, em frente ao Palácio, estava uma multidão de mulheres vestidas de garridas capulanas completadas pelos panos brancos ou coloridos, que lhes cingiam os bustos, elegantemente traçados sobre um dos ombros. Era um espectáculo admirável! E os versos cantados haviam sido compostos em honra do Ministro numa saudação carinhosa que soube depois, por informação de um dos criados do Palácio, ser da autoria do “Padre mouro”. Recebi mais tarde esse muçulmano culto, figura destacada na sua comunidade por haver estudado em Zanzibar e já ter peregrinado a Meca. E conversámos sobre os problemas dos maometanos de Moçambique que constituíam a maioria na província do Niassa: sóbrios na comida e na bebida, honestos e cumpridores, e por isso mesmo preferidos pelos europeus para o trabalho.
A cidade de Moçambique e a de Nampula: que contraste! Uma cheia de monumentos e de história, com a pátina do passado a doirar as suas pedras, parada na sua expansão pelos limites da ilha em que fora edificada; a outra fremente de vida, a crescer todos os dias, de aspecto recente e luzidio, cada casa a pretender ser mais moderna do que a outra, vendo-se por todo o lado romper o futuro pelos interstícios das suas improvisações actuais…
A África portuguesa era assim. Ao contrário de outras zonas colonizadas recentemente por países europeus, na África portuguesa havia marcas de uma presença secular, de uma presença amorável onde se notava sempre a preocupação de refazer os ambientes saudosamente deixados no reino longínquo.
E ao lado dessas relíquias surgiram as realizações actuais, traduzindo o transporte para as regiões tropicais de modos de viver e de técnicas dos tempos presentes.
Bem dizia em Luanda o governador Bayardelle:
— “Vocês, os portugueses, são únicos em África!”»
(Marcello Caetano, in “Minhas memórias de Salazar”, 1977, página 368 e seguintes)