Eu estou de acordo com este texto que me surgiu deste comentário. Gostaria, porém, de acrescentar algumas ideias.
O princípio da separação de poderes é, como o próprio nome indica, um princípio, isto é, tem uma característica para-axiomática que determina a montante a própria concepção de Estado. Um princípio desvela um valor; existe um valor apriorístico (ou um conjunto de valores) encerrado em um determinado princípio.
Para que um princípio tenha aplicação prática eficaz — como é, neste caso, o princípio da separação de poderes —, ele tem que ser aceite a priori por todas as partes envolvidas como sendo um valor universal e racionalmente fundamentado. E é aqui, por exemplo, que a política e o direito positivo se ligam à ética que lhes está a montante. Portanto, o princípio da separação de poderes não pode ser visto como algo susceptível de negociação permanente e provisória, e dependendo do Zeitgeist hegeliano: antes, o princípio da separação de poderes é um valor que tem que ser aceite a priori e em detrimento (ou em sacrifício) dos interesses próprios das entidades políticas envolvidas.
Eis um exemplo claro de como a ética está a montante da política, e de como a subversão dos valores éticos pode minar não só a política como também o próprio Estado.
O Estado não foi inventado por Hobbes ou por Maquiavel, e muito menos é um produto exclusivo do Iluminismo. O que Hobbes fez — em conjunto com outros teóricos do absolutismo e da Razão de Estado negativa (como por exemplo, Jean Bodin, ou Gabriel Naudé que tem a célebre frase que “num golpe-de-estado, a execução precede a sentença”) — foi subverter a ética vigente para fundamentar o absolutismo de Estado e, portanto, uma forma de totalitarismo.
Naturalmente que as ideias de Hobbes influenciaram, em muito, Rousseau, e o conceito abstracto desde último de “vontade geral” tem muito de influência hobbesiana. E, como, sabemos, o Contrato Social foi a “bíblia” dos jacobinos. Quando falamos de Rousseau, não podemos apagar o fantasma de Hobbes que o assombrou.
Por último, há um pequeno detalhe em acrescento ao primeiro postal que queria salientar.
A ética vigente e anterior a Hobbes, e que era legado da Grécia clássica, privilegiava os fins últimos em detrimento dos fins próximos. Escreve Aristóteles: “se há, nas nossas actividades, algum fim que desejemos por si mesmo, e outros só por causa dele, e não escolhemos indefinidamente uma coisa em vista de uma outra, é claro que tal fim não poderá ser senão o bem, o Soberano Bem” [Ética a Nicómaco, I, 1, 1094 a 20].
Hobbes inverteu também este princípio aristotélico, e passou a privilegiar os fins próximos e desprezou literalmente os fins últimos.
Isto significa que, para Hobbes, e pelo facto de não haver um fim último em que o desejo se possa fixar, a sabedoria humana passou a ser destituída de qualquer valor, por um lado, e, por outro lado, a posse duradoura de um bem não implica o contentamento do ser humano, o que significa que este carácter indefinido do desejo hobbesiano traduz-se numa busca indefinida dos meios para obter esse mesmo desejo, o que implica a noção de uma busca ininterrupta do Poder (seja qual for a forma de poder) e do seu aumento incessante, ávido e sem limites. É assim que Hobbes se serve da inversão ética para fundamentar o absolutismo!
A sociedade ocidental (principalmente europeia) caminha rapidamente para um sistema político que é uma vergôntea de Hobbes, na medida em que a inversão ética do filósofo inglês afirma-se, cada vez mais, na nossa sociedade actual.
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