« Falar de acordo do pensamento com a realidade é o mesmo que falar de acordo do pensamento consigo mesmo, e reciprocamente. E isto não por o pensamento não poder sair de si e penetrar na realidade, nem por o pensamento ser a realidade, nem por a realidade ser o pensamento — mas porque pensamento e realidade são uma e a mesma coisa. »
— Edmundo Curvelo, Introdução à Lógica, Lisboa, 1942, Edições Cosmos, página 140
Edmundo Curvelo foi considerado o melhor lógico português do século XX, foi professor liceal de História e de Filosofia, e professor universitário de História da Filosofia Antiga, Moderna e Contemporânea, Teoria do Conhecimento, Moral e Lógica. Quem sou eu, um humilde ignaro, para contradizer ou mesmo discordar do professor Edmundo Curvelo?
Em princípio, a proposição em epígrafe está correcta porque decorre da validade do princípio de autoridade de direito que supostamente se baseia numa autoridade de facto.
Vemos nessa proposição a influência de Kant — embora alterada — e a tentativa de negar S. Tomás de Aquino. O santo dizia que “a verdade é a adequação do intelecto (pensamento) à realidade”. E na minha opinião, o santo dizia bem. E, portanto, segundo o santo, se o pensamento [implícito em “intelecto”] tem que se adequar à realidade para descobrir a verdade, pensamento e realidade não são a mesma coisa. Mas o professor Curvelo diz que não: que o santo estava errado…!
Por outro lado, Kant [e também, por exemplo, o neo-kantiano ou neo-criticista Karl Popper] diz — e bem — que o cérebro humano não é uma espécie de balde onde os sentidos despejam as sensações provenientes do mundo exterior. Em vez disso, dizia Kant que existe uma espécie de software implantado no cérebro humano que faz o tratamento dos dados das percepções sensoriais recebidas do exterior por via dos sentidos. Ou seja, o cérebro interpreta; e cada interpretação de um determinado fenómeno inerente à realidade é uma teoria.
Então, como é que o professor Curvelo chega à conclusão de que “o pensamento e a realidade são uma e a mesma coisa”?! Deixo a resposta para o caro leitor, que certamente terá mais perspicácia do que eu.
Porém, eu penso que o professor Curvelo era um hegeliano — o que aliás não era de espantar porque Hegel marcou o espírito do seu (do professor Curvelo) tempo. E Hegel foi conhecido por pegar nas ideias de Kant e adulterá-las. Dizia Hegel que “o que é racional é real”, e vice-versa, o que significa que, segundo Hegel, toda a realidade pode ser traduzida mediante categorias racionais (lógicas). E, portanto, se “o que real é racional”, então “o pensamento e realidade são uma e a mesma coisa” — conclui o professor Curvelo.
Mas não é.
Em primeiro lugar, o professor Curvelo parte do princípio segundo o qual, o pensamento enquanto tal, é sempre racional (ou seja, o pensamento é sempre sustentado pela lógica).
Em segundo lugar, o professor Curvelo parte do princípio de que a realidade, entendida em si mesma, não é nunca logicamente contraditória, e por isso pode ser categorizada racionalmente [Hegel].
Tanto o primeiro princípio como o segundo são falsos. E quando um princípio está errado, toda a concepção teórica está errada [Aristóteles], o que significa que, neste caso, o pensamento do professor Curvelo não se adequa à realidade — lá dizia S. Tomás de Aquino, e com razão!