Vejo aqui escrito o seguinte:
« Num debate sobre a eutanásia, a deputada esquerdista Isabel Moreira afirmou que a vida humana não é um direito absoluto. Tal afirmação provocou indignação em muitos direitistas, que, assumindo uma posição mais humanista que católica, chegaram a diabolizar a deputada, acusando-a de nazismo.
Contudo, apesar de errada quanto à sua aplicação, a afirmação está correcta. De facto, à luz do Direito e da Moral Católica, a vida humana não tem um valor absoluto. Deus, que não Se engana nem nos engana, ensina pelo 5º Mandamento que é proibido matar. Mas também nos ensina, pelo mesmo Mandamento, que é lícito tirar a vida de outrem em certas ocasiões.»
1/ Eu não vi o tal debate (eu não vejo a RTP, porque é um canal de pura propaganda política), e por isso não sei em que exacto contexto a Isabel Moreira afirmou que “a vida humana não é um direito absoluto”; desde logo porque seria preciso saber exactamente o que ela quis dizer com “direito absoluto”; e, ademais, não devemos confundir “direito absoluto”, por um lado, com “valor absoluto”, por outro lado — como parece que o escriba em epígrafe confundiu. Há muitos “valores” que não são expressos em “direitos”.
2/ Os casos em que a Igreja Católica — alegadamente, diz ele, através do catecismo de 1908 — é permissiva em relação ao homicídio, diz respeito a casos de legítima defesa — seja nos casos da guerra, em que matamos para defender a nossa vida (legítima defesa colectiva); seja nos casos de condenação à pena de morte, em que se mata para defender a vida na sociedade (as sociedades nómadas não tinham prisões); seja nos casos em que alguém mata outro indivíduo para não ser morto por este (legítima defesa).
Mas esta posição da Igreja Católica nada tem a ver com uma qualquer oposição ou divergência em relação a um qualquer “humanismo”, mas antes tem a ver com o Direito Natural. E a Isabel Moreira é inimiga fidagal do Direito Natural, enquanto tal: portanto, as razões que movem a Isabel Moreira não coincidem certamente com as razões que a Igreja Católica alegadamente invoca para justificar o assassínio em certos casos.
3/ A condenação à pena-de-morte é sempre, em primeiro lugar e em qualquer circunstância, um acto político — ou seja, extrapola sempre o simples procedimento judicial. A execução de um condenado à morte é, em primeiro lugar, uma afirmação (que se pretende absolutista) de um determinado sistema politicamente organizado. Uma determinada estrutura política não mata um condenado apenas para fazer justiça: mata sobretudo para afirmar inequivocamente o seu Poder (por exemplo, a condenação à morte de Sócrates, o grego).
4/ A auto-preservação da vida humana é inerente ao Direito Natural.
O conceito de “auto-preservação da vida humana” (que justifica a legítima defesa) corresponde ao conceito hegeliano de “direito de necessidade” (Notrecht), que decorre de uma situação tal em que o ser humano é conduzido a um estado natural, e em que a civilização — e, por isso, a ética cristã — deixa de fazer sentido por força de uma situação excepcional de ameaça à sua própria existência.
5/ A Igreja Católica não pode validar positivamente a simples possibilidade do conceito de “estado natural” do Homem, por razões óbvias.
Aceitar tal possibilidade (aceitar como positivo o “estado natural” do Homem) seria, por exemplo, aceitar o paganismo. Para a Igreja Católica, o estado natural do Homem terá que ser sempre um mal ou, pelo menos, algo de negativo; e nesta medida, não pode ser objecto de doutrinação positiva como (alegadamente segundo o escriba em epígrafe) acontece no caso da inclusão da pena-de-morte no catecismo da Igreja Católica.
6/ Para a Igreja Católica e para o Direito Natural, a legítima defesa é atenuante em caso de homicídio. A legítima defesa iliba judicialmente o homicida porque atenua a sua culpa em função do direito natural à sua auto-preservação.
Em suma:
É uma estupidez alguém dizer que “a vida humana não é um direito absoluto” invocando situações em que o ser humano é excepcionalmente conduzido ao seu estado natural — porque é evidente que, em uma qualquer situação excepcional de selvajaria, não existe sequer a possibilidade do exercício do Direito.
Porém, vindo da Isabel Moreira, já nada me espanta.
Adenda:
Em oposição ao conceito de Estado Civil, o Estado Natural designa — em Rousseau, Locke ou Hobbes — a situação do Homem anterior a qualquer sociedade organizada; e não é necessário que imaginemos se o Estado Natural existiu realmente: é apenas uma hipótese utilizada para a dedução da necessidade do contrato social.
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