perspectivas

Sábado, 23 Novembro 2013

Venerável texto de João César das Neves

 

Excelente texto de João César das Neves no blogue Logos (transcrevo a parte que mais toca a filosofia):

“Porque essa morte, que Ele sofreu por minha causa, durou apenas três dias. Porque Ele, o único a poder dizer que não merece a morte, destruiu a morte com a morte que sofreu por minha causa. Assim não há mais morte, não há mais culpa. Tudo foi levado na enxurrada da ressurreição de Cristo.”

Há assuntos que eu não devo mencionar aqui para não ofender os "católicos fervorosos" que só leram o catecismo da Igreja Católica; mas penso que devo mencionar, por exemplo, que se Deus criou o universo (o mundo e toda a realidade), também criou o devir, a mudança; e se criou o devir, Deus também admite ou permite a existência do negativo — é o Deus absconditus, o Deus que age por toda a parte, no mundo e na realidade, sem que nos demos conta Dele. Sem a acção do Deus absconditus, o universo não poderia existir a cada segundo cósmico, porque a cada segundo cósmico o universo é renovado, como se existisse de novo a cada marcação do tempo cósmico, como se o universo findasse e se renovasse a cada instante cósmico.1

universoO Deus absconditus intervém no macrocosmos através do microcosmo, e sem perturbar as expectativas de regularidade das leis da física (clássica). O princípio da causalidade, que orienta a ciência, “aparece” determinado a partir do microcosmos. Recentemente, teorias no campo da biologia e da bioquímica indicam-nos de que os processos individuais dos seres vivos não são orientados por causas empiricamente comprováveis, mas sim pelo respectivo sistema global mas sem que estas causas resultantes do sistema sejam comprováveis. 2 Sendo assim, por exemplo, o comportamento de uma abelha teria causas comprováveis de ordem genética, mas, para além disso, esse comportamento seria orientado por causas empiricamente não localizáveis do sistema global chamado “colmeia”. Transpondo esta ideia para a ideia de Deus absconditus, podemos fazer uma analogia e dizer que Deus pode intervir nos processos naturais a partir da posição da Totalidade, sem que as leis da natureza sejam infringidas e sem que a Sua intervenção seja comprovável cientificamente.

Sem que o Deus absconditus permitisse o Mal, ou o negativo, não poderia haver a mudança e o negativo que advém do devir. Mas esse Deus absconditus é “periférico”: podemos verificar o Seu Ser na natureza e no universo, no tempo e no espaço, na mudança e no devir, mas não é propriamente o Deus do espírito humano: é o Deus que criou as condições naturais para que os seres vivos pudessem existir.

Porém, Deus tem muitas propriedades: o Deus da Bíblia é também o Deus misericordioso, o Deus de Jesus Cristo. O filósofo Schelling escreveu o seguinte 3 :

“Podemos considerar o primeiro Ser como algo acabado de uma vez por todas e como algo existente sem alterações. Este é o conceito habitual de Deus da chamada “religião racional” e de todos os sistemas abstractos. Porém, quanto mais elaboramos este conceito de Deus, tanto mais Ele perde para nós em vida, tanto menos é possível compreendê-Lo como um ser real, pessoal. Se exigimos um Deus que podemos encarar como um ser vivo e pessoal, temos de O encarar também de maneira completamente humana, temos de admitir que a Sua vida apresenta a maior analogia com o humano, que n’Ele, para além de ser eterno, existe também um devir eterno.” 4 

Ou seja, segundo Schelling, Deus é Ser e Potencialidade que é, por sua vez, a possibilidade de multiplicidade. E Jesus Cristo simboliza esta outra propriedade ou faceta de Deus: o Deus imutável que encarnou no mundo do devir por Ele próprio criado. Jesus, como ser humano, sofre na cruz, no espaço-tempo e sujeito à experiência da condição humana; mas Cristo, como propriedade de Deus, não sofre e abre ao ser humano a esperança do Ser Eterno.


Notas
1. Orígenes escreveu que “o Logos (o Filho) olha constantemente para o Pai, para que o mundo possa continuar a existir”História da Filosofia, de Nicola Abbagnano.
2. Fritjof Capra, The Web of Life, 1996
3. Filosofia da Revelação, 1841, na parte tardia da vida de Schelling e, portanto, menos imanente e mais transcendente.
4. Em 1841 ainda não se sabia da teoria do Big Bang

4 comentários »

  1. Estimado Braga.

    Estou lendo o livro – O Enigma Quântico. Desvendando a Chave Oculta. – de Wolfgang Smith. Sem dúvida, com o mínimo domínio do modelo hilomórfico da metafísica Aristotélica e também com o mecanismo de ato e potência de São Tomás de Aquino, e devido a exatidão dos resultados obtidos pela mecânica quântica, nota-se que a leis da física clássica têm suas causas oriundas no regime atômico. Colocando em outras palavras, a regularidade descrita pela leis da física clássica são atualizações da estrutura de probabilidades que existem em potência no regime atômico, portanto quântico.

    Quanto mais no cerne da matéria( como entende um físico atual), percebe-se uma estrutura fundamental, verifica-se o todo, que não pode ser a soma das partes. Como diz René Guénon “fazer sair o ‘mais’ do ‘menos’; eis aqui, com efeito, uma das típicas de todas as aberrações modernas”. Essa essência da natureza indicada pelo regime atômico e também pelo cosmo, uma vez que a relatividade, tanto a restrita quanto a geral, nos indica que espaço e tempo é uma unica estrutura que hora pode ser atualizada como espaço e em outro instante como o próprio tempo.

    Não estou na envergadura intelectual de fundamentar tais indicações, mas as mesmas, podem nos remeter ao seguinte pensamento: a Palavra ou o Logos é o próprio Deus e permanece eternamente. Deus, nos revela através do logo e também, nos regimes atômico, dos planetas, galaxias, etc. Portanto ” Deus é Ser e Potencialidade que é, por sua vez, a possibilidade de multiplicidade.” Essa seria a causa primeira?

    A aberração que René Guénon faz referência, é que, ao admitir que não há algo além das coisas, torna-se absurdo conceber propósitos elevados, transcender por assim dizer; então, partindo das coisas, não iremos além delas? Ai está a falacia do comunismo, materialismo, modernismo e por ai vai?

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    Comentar por George Valadares — Domingo, 15 Dezembro 2013 @ 7:54 am | Responder

    • “nota-se que a leis da física clássica têm suas causas oriundas no regime atómico. Colocando em outras palavras, a regularidade descrita pela leis da física clássica são actualizações da estrutura de probabilidades que existem em potência no regime atómico, portanto quântico.”

      Pode-se dizer que essa proposição é verdadeira. Existem basicamente duas grandes forças do universo (forças imanentes, mas não transcendentes): a força quântica, e a força entrópica da gravidade que “cria” o mundo tal qual o percebemos pelos sentidos e interpretamos através do “software” do nosso cérebro. Ou seja, a realidade macroscópica é um forma de entropia de uma outra realidade mais “fluída”, por assim dizer, onde não há “objectos” propriamente ditos — as partículas elementares não são objectos no sentido clássico do termo, e podem não ter massa quando assumem a função de onda. Por exemplo, o Tempo é uma dimensão quântica da realidade construída pela “acção” provável das partículas elementares como, por exemplo, os fotões que podem não ter massa e, por isso, podem não ser “matéria” propriamente dita (do ponto de vista da física clássica, a matéria tem massa).

      As partículas elementares subatómicas não são “coisas”, tal como me aparece a cadeira em que me sento. As regras pelas quais se regem as partículas elementares seriam de impossível aplicação no nosso mundo das “coisas”. No mundo das nossas “coisas”, por exemplo, um copo cai ao chão e estilhaça-se em pequenos pedaços de vidro; porém, no mundo das partículas elementares, seria como se um copo caísse ao chão e da sua queda surgissem milhares de outros copos inteiriços e iguais ao primeiro.

      O físico Fritjof Capra, autor do livro o “Tau da Física”, escreve :

      « (…) as partículas subatómicas não são coisas, mas sim ligações entre coisas, e estas coisas são, por sua vez, ligações entre outras coisas, e assim por diante. Isto demonstra que não podemos decompor o mundo em unidades minúsculas, existentes independentemente uma das outras. Ao penetrar na matéria, não encontramos elementos básicos isolados, mas sim uma rede complexa de relações entre as várias partes de uma totalidade única. »

      Contudo, o mais enigmático é que estes processos atómicos não decorrem em um determinado lugar e em um determinado momento, possuindo apenas “a tendência para surgir”. Estes processos atómicos são meras possibilidades. São eles próprios, por assim dizer, que decidem se surgem ou não; não existe uma causa responsável por isso.“Eles surgem (aparentemente) sem uma razão especial, mais provavelmente agora do que em um outro momento” — parafraseando o físico John Gribbin.

      “Quanto mais no cerne da matéria (como entende um físico actual), percebe-se uma estrutura fundamental, verifica-se o todo, que não pode ser a soma das partes.”

      O conceito mais misterioso para a ciência é o conceito de “matéria”. A ciência não sabe muito bem o que é “matéria”; no entanto, muitos cientistas dizem-se “naturalistas” no sentido de “materialistas”. Ser “materialista” é a coisa mais absurda que podemos conceber exactamente porque não sabemos o que é “matéria”.

      A física quântica já chegou à conclusão, através do conceito quântico de “holismo”, que o Todo é mais do que a soma das partes.

      “Como diz René Guénon “fazer sair o ‘mais’ do ‘menos’; eis aqui, com efeito, uma das típicas de todas as aberrações modernas”.

      O problema é que as conclusões da física quântica são propositadamente escondidas do cidadão comum. Existem paradigmas “científicos” de tal forma arreigados a esta comunidade científica atávica (e atada) e é a própria comunidade científica que esconde as revelações da física quântica e guarda-as só para si, à espera que surja uma teoria qualquer que as coloque em causa.

      “Essa essência da natureza indicada pelo regime atómico e também pelo cosmo, uma vez que a relatividade, tanto a restrita quanto a geral, nos indica que Espaço e Tempo é uma única estrutura que hora pode ser actualizada como Espaço e em outro instante como o próprio Tempo.”

      Aqui, tenho reservas.

      Eu diria assim: o Espaço é uma consequência da geração do Tempo por parte da função de onda quântica (“princípio da complementaridade”, de Heisenberg). Primeiro está o Tempo, e só depois o Espaço. O Tempo surge antes do Espaço. Aliás, o Big Bang demonstra-nos isso mesmo: primeiro surgiu o Tempo com a explosão inicial, e depois o Espaço foi-se formando — anulando o Nada Material ou Nada macroscópico — a partir de um ponto inicial no Tempo. Por analogia, podemos imaginar um balão que se vai enchendo: a superfície exterior do balão é o limite do universo, fora o qual não existe qualquer realidade macroscópica (matéria) e que se vai expandindo (o universo está em expansão) por acção primordial do Tempo determinado pela acção provável das partículas elementares quânticas.

      “a Palavra ou o Logos é o próprio Deus e permanece eternamente.”

      Transpor a filosofia quântica para a metafísica é muito complicado, porque a quântica é exclusivamente imanente — ao passo que a metafísica pode abranger a transcendência. Neste caso, o conceito de Logos exige uma exegese: trata-se de um símbolo que tem que ser interpretado devidamente. O conceito de Logos é muito antigo; os próprios gregos socráticos foram buscá-lo aos filósofos de Orfeu e aos pitagóricos que, por sua vez, tinham ido buscá-los aos babilónios e à cultura védica, e antes disso aos sumérios que foram um povo de que ninguém sabe a sua origem.

      Portanto, o conceito de Logos é tão antigo quanto a humanidade: apenas foi sofrendo diferenciações culturais (adaptações) à medida em que o ser humano passava pelas várias culturas, ao longo do tempo.

      O enorme problema do ser humano é conceber a transcendência, ou seja, a realidade que transcende a matéria, que está “para além” da matéria. A História da Filosofia tem várias teses acerca da transcendência, mas quase todas elas acabam por cair na imanência — por exemplo, a “teoria da emanação” neoplatónica.

      “Deus é o infinitamente próximo e o infinitamente longínquo; de Ele não se deve falar como se estivesse a média distância” — Nicolás Gómez Dávila

      Deus actua na nossa realidade a cada segundo cósmico — neste aspecto estou de acordo com Newton e em desacordo com Leibniz. Se não fosse assim, a nossa realidade desvaneceria no olvido. Deus actua essencialmente através da realidade microscópica (quântica) para que não se perturbe a regularidade física das leis do universo macroscópico: sem essa regularidade das leis da física clássica, o universo não poderia existir.

      A citação de Nicolás Gómez Dávila serve também para nos fazer intuir que a dimensão espaço-temporal do universo, para Quem está fora dele, não significa qualquer dificuldade ou problema. Tenha o universo o tamanho que tiver, para Deus o universo não é senão uma criação Dele; e o tamanho do universo, que para nós constitui um problema e um enigma, para Deus não é nenhum problema — porque Deus está infinitamente próximo e, simultaneamente, infinitamente longínquo da nossa realidade.

      Esta afirmação de Nicolás Gómez Dávila pode parecer paradoxal, mas a realidade quântica também é paradoxal por natureza: por exemplo, o princípio de Heisenberg é paradoxal e de difícil compreensão pelo homem moderno; e por isso é que as pessoas religiosas, que lidam melhor com o paradoxo, são as que melhor entendem a física quântica.

      O problema do materialismo é que parte de um conceito abstracto de matéria para construir uma doutrina ilógica — porque se não existe nenhuma possibilidade de enraizar a nossa realidade no Absoluto, todas as reflexões são inúteis e a lógica não existe.

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      Comentar por O. Braga — Domingo, 15 Dezembro 2013 @ 9:58 am | Responder

      • Estimado Braga.

        Mais uma vez obrigado por contribuir, por ajudar a tentar transcender e também por advertir que sem prudência nessa caminhada podemos tropeçar e ficar como cartesianos <>.

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        Comentar por George Valadares — Domingo, 15 Dezembro 2013 @ 2:30 pm

  2. Retificação.

    pela >> pelas; … descrita pelas leis da física clássica são atualizações da estrutura de probabilidades que existem em potência no regime atômico, portanto quântico..

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    Comentar por George Valadares — Domingo, 15 Dezembro 2013 @ 8:36 am | Responder


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