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Sábado, 10 Agosto 2013

Santo Agostinho e o Cogito de Descartes

Filed under: filosofia,Ut Edita — O. Braga @ 2:20 pm
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Nós aprendemos que o conceito de Cogito“eu penso, logo existo” – é de Descartes, mas trata-se de uma meia verdade. Em boa verdade, o conceito de Cogito é de Santo Agostinho, embora elaborado de uma forma ligeiramente diferente: dizia Santo Agostinho que “eu duvido, logo existo”.

“No entanto, ¿quem quereria duvidar que existe, se lembra, compreende, deseja, pensa, sabe e julga? E que, mesmo quando se duvida de tudo o resto, não deve ter dúvidas acerca disto. Se não existisse o Eu, não poderia duvidar absolutamente de nada. Por conseguinte, a dúvida prova por si própria a verdade: eu existo se duvido. Porque a dúvida só é possível se eu existo.” – (Confissões).

O que é extraordinário é que nas aulas de filosofia do ensino secundário se fale do Cogito de Descartes e não se refira o facto de que, de certa maneira, Descartes plagiou Santo Agostinho. Parece que os meus professores fizeram de propósito: riscaram Santo Agostinho do mapa. Ou então, desconheciam a origem do “cogito, ergo sum”. Só mais tarde me apercebi do plágio de Descartes.

Santo Agostinho parte da dúvida: se eu duvido, descubro no meu pensamento aquilo que já sabia desde sempre: eu existo, e tenho a certeza absoluta de que existo.

Se eu quisesse provar directamente – e de uma forma concludente, a mim próprio ou a outrem – o facto de eu existir, não poderia fazê-lo. Poderia beslicar-me, ou dar umas bofetadas a mim próprio; mas, teria também que provar que as percepções sensoriais, que decorrem do beliscão ou da bofetada, garantem absolutamente a verdade – porque também posso sonhar os beliscões ou as bofetadas. E se quisesse provar a minha existência com a ajuda de silogismos lógicos, ou através de provas abstractas, teria que provar, em primeiro lugar, a sua verdade – e nunca mais chegaria ao fim, na tentativa de prova.

Santo Agostinho demonstrou o seguinte: eu tenho uma certeza de mim próprio que não pode ser provada, mas que está profundamente enraizada em mim, e nessa certeza posso confiar de um modo absoluto. Eu existo, e nada no mundo é mais certo do que esse facto. O facto de eu existir é um absoluto sem prova, e é em si mesmo verificável pela minha experiência interior. Ou seja, estou em presença de uma experiência que antecede o pensamento.

Descartes inverteu o Cogito de Santo Agostinho: o Santo dizia que “eu existo, logo penso”, ao passo que Descartes dizia que “eu penso, logo existo”.

Segundo Santo Agostinho, antes de pensar, sei que existo. Este conhecimento, segundo o qual eu existo, logo penso, tem origem em mim mesmo, e para mim não há nada mais certo. Esta minha experiência de mim mesmo é diferente da minha experiência em relação às coisas que estão fora de mim: ela representa a última instância, para além da qual não é possível remontar, e a partir da qual se tornam possíveis todas as outras experiências da minha vida (o “X” de Kant).

7 comentários »

  1. Muito interessante esta pergunta: Quem sou EU? Isto leva-nos para outros caminhos… Eu sou EU a partir de que momento? Se EU só sou EU a partir do momento em que nasço, isso quer dizer que antes de EU nascer EU não sou EU?… Se sim, sou quem ou quê? Se para EU nascer tive que passar, mais ou menos, 9 meses dentro da barriga de outro EU (que apesar de ser diferente do meu EU, permitiu que EU fosse EU), então quando é que EU sou EU?…. Não sei se me fiz entender…

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    Comentar por Amelia Saavedra — Sábado, 10 Agosto 2013 @ 7:58 pm | Responder

    • Entendi, mas isso seria objecto de um outro verbete. Santo Agostinho apenas se referiu à existência enquanto ser humano, porque para Santo Agostinho era impensável o acto de abortar, por exemplo. A abordagem de Santo Agostinho, neste caso concreto, é filosófica e não propriamente teológica.

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      Comentar por O. Braga — Domingo, 11 Agosto 2013 @ 4:16 am | Responder

  2. Caro Braga, por gentileza, poderia indicar em que parte das Confissões de Agostinho se encontra a passagem citada? De quem é a tradução? Não tive sucesso em localizar este passo no livro. Um abraço cordial, Charlene.

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    Comentar por Charlene Miotti — Terça-feira, 27 Agosto 2013 @ 8:28 pm | Responder

    • “De libero arbitrio”, tradução da Faculdade de Filosofia de Braga, 1998 (procure logo nas páginas iniciais).

      O lapsus calami aconteceu basicamente por três razões:

      1/ a citação foi transcrita de um outro livro — da autoria de Wilhelm Weischedel, “Die Philosophische Hintertreppe”, 1995, página 77; existe uma tradução no Brasil: ver link abaixo — e não fui confirmar a fonte;

      2/ não fui confirmar a fonte porque se trata aqui de um blogue que é escrito com alguma falta de tempo (eu não vivo disto), e não de uma aula de filosofia;

      3/ no seu livro, Wilhelm Weischedel faz várias citações de Santo Agostinho e das “Confissões”, e eu assumi que essa citação em causa também seria das “Confissões”.

      De qualquer modo, a importância do lapsus calami é relativa, porque a frase é, de facto, de Santo Agostinho. Disso não há dúvida.

      http://pt.wikipedia.org/wiki/Wilhelm_Weischedel

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      Comentar por O. Braga — Terça-feira, 27 Agosto 2013 @ 9:10 pm | Responder

  3. Caro Braga, agradeço a pronta resposta. Tenho em mãos uma tradução brasileira do “de libero arbitrio” (a que você indica, infelizmente, não a tenho), mas ainda assim não encontro aquele trecho. Se não abuso de sua boa vontade, poderia ser mais preciso? “Logo nas páginas iniciais” não o achei. Onde, no “de libero arbitrio”, estará este curioso pedaço de filosofia? Sabendo que este é um blog e que o senhor não vive de filosofia, esteja à vontade para responder quando e se quiser. Pergunto apenas pelo desejo de saber. Um abraço!

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    Comentar por Charlene Miotti — Terça-feira, 27 Agosto 2013 @ 9:43 pm | Responder

    • A citação existe, de facto, na edição que eu tenho. Mas se você quiser tirar dúvidas, compre e leia o seguinte livro que existe também no Brasil:

      “A escada dos fundos da filosofia”. Trad. Edson Dognaldo Gil. São Paulo: Ed. Angra. (veja pelas páginas 70 a 80). Em Portugal este livro não foi editado, e apenas tenho a edição alemã.

      E já agora, peço-lhe o seguinte: se você, de facto, verificar que a citação existe e é de Santo Agostinho, faça por favor o obséquio de vir aqui a este verbete e reconhecer esse facto. A sua dúvida é legítima, mas também conto com a sua boa-fé (como é óbvio e legítimo também).

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      Comentar por O. Braga — Terça-feira, 27 Agosto 2013 @ 10:10 pm | Responder

    • Repare que as palavras podem não ser exactamente iguais: depende da tradução. Mas o que interessa é o sentido geral da frase. É impossível haver duas traduções exactamente iguais. Convém ir pelo sentido da frase, e não pela transcrição literal do texto.

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      Comentar por O. Braga — Terça-feira, 27 Agosto 2013 @ 10:20 pm | Responder


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