« Tudo isto a girar em torno do conceito de identidade, colectiva e individual: a firme e propagada identidade duma nação; a procura de identidade de grupos emergentes; a perda de identidade dum bombeiro que deixou de o ser; a identidade incómoda duma mãe muçulmana que procura o filho; a brusca transformação da identidade de alguém ao ver a morte espalhada pelas ruas… »
via De Rerum Natura: "Uma vida de escrita ensinou-me a desconfiar das palavras".
A Esquerda — e os ateístas — dizem frequentemente que “as religiões são a causa das guerras”, o que significa literalmente dizer, por exemplo, que “a causa da guerra de Tróia foi o amor entre Páris e Helena” (não confundir com a Damião).
E esta crítica infundada e irracional às religiões advém da crítica genérica, moderna e contemporânea, à identidade, no sentido da negação do Ser [niilismo]. De uma maneira intrinsecamente contraditória, a negação do Ser transforma-se em uma forma de Ser, e a negação moderna da identidade (por exemplo, no Existencialismo) assume, ela própria, uma forma peculiar de identidade. Nega-se ser aquilo que se é, e negando-se o que se é, assume-se uma forma de ser: é o mundo visto a partir de dentro de um manicómio.
Há que fazer a distinção entre “amor”, por um lado, e “amor-de-si”, por outro lado. O que falta à elite académica é ler os clássicos.
A causa da guerra de Tróia não foi o amor identitário entre Helena e Páris: antes, foi o facto de o rei de Esparta, Menelau, para além de ser um grande cornudo (o que parece não ser admissível num personagem com um grande Poder político), tinha naquela época um poder militar incomensurável à sua disposição. É esta a diferença entre o “amor” (entre Páris e Helena de Tróia), por um lado, e, por outro lado, o “amor-de-si” (do cornudo rei Menelau de Esparta).
O problema das guerras não tem a ver com a identidade (pessoal, religiosa, comunitária, nacional, etc.), não só porque é impossível deixar de ter identidade sem que essa falta seja, por sua vez, uma forma de identidade, mas essencialmente porque o problema da guerra está ligado com o Poder e com a afirmação ostensiva de Poder. E muitas vezes, a vítima torna-se no carrasco, e vice-versa, e de tal modo que deixamos de ter uma percepção apurada de quem é realmente a vítima do bullying do Poder — normalmente, a Esquerda (e o feminismo) considera-se sempre e invariavelmente a vítima do bullying do Poder através do exercício sistemático de um mecanismo mental maniqueísta, e da projecção sistemática da culpa, o que é, de facto, o mundo visto a partir de dentro de um manicómio.
Se, por absurdo, fosse possível a erradicação identitária das nações, das religiões, dos indivíduos, etc, a guerras não acabariam por esse facto. Ironicamente, a razão por que Montesquieu dividiu o Estado pelos três poderes foi no sentido de evitar a acumulação de Poder em uma só entidade; porém, a História depois de Montesquieu mostrou que nunca houve tantas vítimas inocentes em resultado das guerras como depois da revolução de 1789. O historiador francês Pierre Chaunu teve a seguinte frase escandalosa: “A revolução francesa matou mais gente em apenas um mês e em nome do ateísmo, do que a Inquisição em nome de Deus durante toda a Idade Média e em toda a Europa.”
E depois, temos a Helena Damião (não confundir com a de Tróia) a insinuar subrepticiamente — como é seu timbre e também o do blogue em que escreve — que “a culpa das guerras é da identidade” (nacional, religiosa, cultural, individual), e tudo isso em nome do maniqueísmo característico da Esquerda que projecta as culpas para “tudo o que mexe” e que não lhe convenha por razões pessoais, e talvez também por problemas identitários próprios provavelmente mal resolvidos.
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