Num Estado laico, deverá um governante católico ser coibido de manifestar as suas convicções religiosas em público, e enquanto católico, só porque é governante?
- Das duas, uma: ou o Estado é laico — no sentido de não apadrinhar nenhuma confissão religiosa em geral — ou não é. Se o Estado é laico, isso não significa que o Estado seja ateísta. Uma coisa é o Estado laico — por exemplo, o Estado alemão; outra coisa, bem diferente, é o Estado ateísta — por exemplo, o Estado cubano, chinês, norte-coreano ou vietnamita.
- Coloca-se o problema de saber se num Estado laico não existe necessariamente uma religião de Estado. E aqui há que definir “religião” e fazer um paralelismo com “religião política” ou ideologia política.
A religião é um “conjunto de crenças — sintetizadas numa doutrina, algumas delas dogmatizadas —, dos sentimentos subjectivos, dos ritos, e das instituições afins que estabelecem uma relação entre o Homem e o sobrenatural.”
Chegados aqui, faz falta definir “sobrenatural”: é «tudo aquilo que supera a ordem natural dos fenómenos — “fenómenos” entendidos no sentido kantiano —, de facto, ou aparentemente.»
- Agora, vamos saber se ao Estado é possível ser neutral em matéria seja do que for. A resposta é não. Ao Estado não é possível, por razões absolutamente lógicas, optar entre neutralidade e a não-neutralidade, seja em que matéria for, e inclusivamente na religião. A neutralidade do Estado, seja no que for, é sempre uma forma de não-neutralidade.
Portanto, a neutralidade do Estado em matéria religiosa é um sofisma. O que pode existir é uma posição equidistante do Estado em relação às religiões, o que não significa neutralidade religiosa. Equidistância não é sinónimo de neutralidade.
- Vimos que sobrenatural é também aquilo que supera, de facto, a ordem natural dos fenómenos — entendidos no sentido kantiano, ou seja, o fenómeno é tudo aquilo que é perceptível pelos sentidos. Por exemplo, a noção formal de teleportação quântica pode ser incluída no conceito de sobrenatural. Tudo aquilo que é, de facto ou aparentemente, imanente à realidade fenomenológica pode ser considerado sobrenatural.
O sobrenatural existe, por exemplo, na religião dos extraterrestres, que não deixa de ser religião pelo facto de ser imanente, e por isso “não-transcendente”. E na religião dos extraterrestres, o sobrenatural é aquilo que não é perceptível pelos sentidos — ou seja, o sobrenatural é os extraterrestres e a sua pretensa actividade! E podemos considerar a teoria do aquecimento global como uma forma de religiosidade ou para-religião, em que existe presente uma imanência escatológica subjectivista que é a própria dimensão do sobrenatural do “aquecimentismo”.
- Portanto, para além das religiões transcendentais ou universais no sentido clássico do termo, temos também as religiões políticas que são eminentemente imanentes. As ideologias políticas são formas imanentes de religião.
Corolário: o Estado só pode ser neutral, em matéria religiosa, se for apolítico — o que é uma impossibilidade objectiva e uma contradição em termos.
Agora, voltemos à pergunta: num Estado laico, deverá um governante católico ser coibido de manifestar as suas convicções religiosas em público, enquanto católico, e só porque é governante?
Na medida em que o Estado não é neutral em matéria religiosa, mas antes deve ser equidistante em relação às crenças religiosas, o Estado torna-se totalitário quando inibe o indivíduo, seja em que situação for, de manifestar as suas crenças religiosas.
Assim, proibir a ministra Assunção Cristas de manifestar publicamente as suas crenças religiosas é equivalente, por exemplo, a proibir Jerónimo de Sousa, na sua condição de deputado, de manifestar publicamente a sua religião política marxista.
AVISO: os comentários escritos segundo o AO serão corrigidos para português.