O futuro é apenas uma miríade infinita de possibilidades, e nada está pré-determinado. E mesmo aquilo que parece estar pré-determinado, por exemplo, as leis da física, não só não têm qualquer valor face à singularidade [por exemplo, face a um buraco negro], como não existe racionalmente qualquer certeza de que não possam ser anuladas a qualquer momento.
Vimos no verbete anterior, grosso modo, as diferenças entre a ética voluntarista neoplatónica baseada no “paradoxo paulino” e em parte adoptada por Santo Agostinho, e que se estendeu ao longo dos séculos, tornando-se dominante, até que surgiu S. Tomás de Aquino. Este último introduziu uma nova ética cristã e católica, embora intelectualista e racional. Depois de Aquino surgiu Duns Escoto com o retorno a uma ética voluntarista radical e de ruptura total com S. Tomás de Aquino. Duns Escoto levou o paradoxo paulino a um extremo radical e absurdo, comparável em absurdez à ciência actual que diz que o universo surgiu do Nada.
Duns Escoto levou o determinismo e a recusa do livre-arbítrio a tal ponto que defendeu que Deus é desprovido de liberdade [evolução para Espinoza, misturada com o estoicismo: Deus sive Natura].
Diz Duns Escoto que o ser humano não quer o “soberano bem” pela razão de este ser a natureza de Deus criador e salvador: antes, segundo Duns Escoto, nós queremos o “soberano bem” porque é um bem em geral: mesmo que Deus não existisse (“Ordinatio, IV, d. 17”), não seria por isso que o “soberano bem” deixaria de existir [Montesquieu e os revolucionários franceses de 1789 adoptaram esta teoria para substituir a ética, baseada na “lei eterna”, pelo Direito Positivo].
“Se, por impossível, fosse posto um outro Deus que não nos tivesse criado e que não devesse glorificar-nos, ainda assim seria, de forma absoluta, soberanamente amável por nós.” — Duns Escoto, in Reportata Parisiensia, III, d. 27, q1, nº 6
Aqui, para além de sublinhar o determinismo a que o próprio Deus está absolutamente sujeito, Duns Escoto recua no tempo e adopta a essência da dualidade divina — ou da possibilidade da existência de um Deus que não fosse único — oriunda do gnosticismo cristão da antiguidade tardia, por exemplo, o de Marcião (~ 140 – 160 d.C.)
Dizia Marcião que o Deus de justiça manifestou-se no Antigo Testamento — é o criador do mundo material; mas maior do que o Deus criador, é o Deus do amor — o salvador revelado em Jesus Cristo. Este Deus do amor, que é, segundo Marcião, superior ao Deus criador, tomou a aparência da carne “para conduzir ao céu as almas dos eleitos” — os que detêm a Gnose: o conhecimento dos mistérios do mundo celeste — prisioneiras deste mundo inferior. Mas, segundo Marcião, Jesus morreu vítima do Deus criador e inferior ao Deus do amor. Desde modo, a alma fica cativa entre o jogo de duas forças antagónicas — a força do Deus criador que se opõe à força do Deus do amor — e, por isso, a alma não tem responsabilidade do mal [a transferência da culpa e do mal; ou em linguagem psiquiátrica : a “projecção” da culpa]. E, conclui Marcião: no fim dos tempos, a carne, a matéria e o Deus criador serão aniquilados.
Esta “dualidade de deuses” — de Marcião e, implicitamente, existente como “possibilidade impossível” em Duns Escoto — que se opõem escora-se no gnosticismo pagão da Mesopotâmia e do próximo oriente, por exemplo, no cântico babilónico da criação Enûma Elish, em que Marduk, o deus da cidade da Babilónia, matou os seus pais (os deuses primordiais).
A mundividência ética de Duns Escoto não morreu com ele: antes propagou-se pela História europeia como fogo em palha seca — desde Gregório de Rimini (“Sentenças”), até Suarez (“De Legibus”), até Grócio (“Sobre o direito da guerra e da paz”), e abriu caminho para um certo determinismo cristão [px. a Nova Teologia, e a Teologia da Libertação] que nada mais é do que um paganismo cristianizado.
Ao fim e ao cabo, S. Tomás de Aquino tinha razão: nenhuma lei da natureza é absolutamente certa e pré-determinada. Em rigor, ninguém provido de razão poderá dizer que tem a certeza absoluta de que o Sol vai surgir no horizonte nascente da próxima manhã.
ΔE Δt ≥ h/2π = Ψ ( Função Ondulatória Quântica )
E = energia
t = tempo
Δ = desvios padrão
Δx Δp ≥ h/4π ( princípio da incerteza de Heisenberg )
x ; posição
p ; velocidade
Δx, Δp ; o desvio padrão de x, e de p;
h ; a constante de Planck.
O futuro é apenas uma miríade infinita de possibilidades, e nada está pré-determinado. E mesmo aquilo que parece estar pré-determinado, por exemplo, as leis da física, não só não têm qualquer valor face à singularidade [por exemplo, face a um buraco negro], como não existe racionalmente qualquer certeza de que não possam ser anuladas a qualquer momento.
“Nenhuma lei da natureza é absolutamente certa e pré-determinada. Em rigor, ninguém provido de razão poderá dizer que tem a certeza absoluta de que o Sol vai surgir no horizonte nascente da próxima manhã.” – Percebo o princípio e concordo, mas não percebo o argumento pelas leis físicas… Podia explicar-se essa verdade de uma maneira acessível e compreensível para leigos na área da Física? Obrigado e um abraço!
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Comentar por João Luís Aguiar (@JoaoLuisAguiar) — Quarta-feira, 25 Julho 2012 @ 1:47 pm |
OK, João. Mas vou ter que dedicar um postal só para essa explicação, e com muito gosto. Depois coloco aqui o limk.
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Comentar por O. Braga — Quarta-feira, 25 Julho 2012 @ 2:02 pm |
[…] de estado, porque aí eu iria complicar aquilo que se pretende ser simples: tentar responder a esta pergunta: “Nenhuma lei da natureza é absolutamente certa e pré-determinada. Em rigor, ninguém provido […]
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Pingback por Resposta a uma pergunta acerca da refutação do determinismo (1) « perspectivas — Quarta-feira, 25 Julho 2012 @ 6:47 pm |
[…] definição que dei, no postal anterior [que diz respeito a esta pergunta], do “princípio de incerteza de Heisenberg” é politicamente correcta, ou seja, não […]
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Pingback por Resposta a uma pergunta acerca do indeterminismo do futuro (2) « perspectivas — Quarta-feira, 25 Julho 2012 @ 11:21 pm |
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