perspectivas

Sexta-feira, 20 Julho 2012

A autonomia do indivíduo e a desconstrução da família nuclear (2)

Estava eu a ler um texto sobre a Lei Natural [em inglês] segundo S. Tomás de Aquino, quando me lembrei de escrever qualquer coisa sobre o assunto, e ainda a propósito da política absolutista da autonomia do indivíduo — ou política dos direitos humanos, sendo lógico que os direitos humanos não podem ser, em si mesmos, uma política.

Desde logo, fica-me a ideia de que a Lei Natural de S. Tomás de Aquino não é exactamente a mesma Lei Natural de Santo Agostinho e do apóstolo Paulo [este assunto fica para o próximo verbete]. E toda esta história da Lei Natural [com excepção da visão tomista da Lei Natural] se relaciona com o gnosticismo e, consequentemente, mais tarde na História, com o cientismo [ou talvez possamos chamar-lhe “positivismo degradado”].

Eric Voegelin definiu assim o gnosticismo:

“O gnosticismo é um sistema de crenças que nega e rejeita a estrutura da realidade, particularmente a realidade da natureza humana, e substitui-a por um mundo imaginário construído por intelectuais gnósticos e controlado por activistas gnósticos.” — Eric Voegelin, “A Nova Ciência da Política”, 1952

Esta definição apresenta algumas dificuldades, porque a realidade é indefinível. Aliás, o próprio Eric Voegelin reconheceu isso. Mas a realidade da natureza humana, sendo uma parte da realidade [uma parte do todo], já se torna definível, ou pelo menos é susceptível de um conceito inteligível e racional.

O “mundo imaginário” de que nos fala Eric Voegelin é, não só mas também, a utopia. A primeira utopia humana estruturada e sistematizada de sempre é a República de Platão. Portanto, podemos dizer que existe uma relação estreita entre o platonismo e o gnosticismo.

Mas para além do gnosticismo platónico, por assim dizer, existe outro tipo de gnosticismo / utopia que se escora em Heraclito e que consiste exactamente na antítese do primeiro, mas não deixa por isso de ser também utópico e gnóstico. Em Heraclito encontramos as raízes comuns do gnosticismo imanente do Médio Oriente — desde as religiões da antiga Mesopotâmia e do Egipto, até ao Judaísmo imanente de antes do exílio, até ao maniqueísmo da religião de Mani, e que se estendeu na História pelo menos até Nietzsche.

As ideias flutuam ao longo da História, e retornam sob roupagens diferentes, mas a essência delas é sempre a mesma.

Existe uma terceira estirpe do gnosticismo que influenciou a nossa cultura ao longo dos séculos, que é o messianismo judaico que caracteriza o Judaísmo depois do exílio. O milenarismo — cristão ou não-cristão — tem profundas raízes no messianismo judaico. Tal como as outras duas vergônteas do gnosticismo, o messianismo judaico tem uma forte carga imanente.

O gnosticismo de Platão, traduzido na República, é grosso modo o comunismo [a recusa da primazia da realidade subjectiva e do indivíduo]. O gnosticismo de Heraclito é a afirmação absoluta da imanência e do escapismo [a recusa da realidade da transcendência mediante o escape para uma realidade imanente e imaginária]. O milenarismo é a recusa da liberdade mediante a afirmação absolutista do determinismo.

Estes três elementos — a recusa da subjectividade e/ou do indivíduo, a recusa imanente e escapista da transcendência, e a recusa determinista da liberdade — interligam-se para formar o gnosticismo moderno.

Esses três elementos estão presentes, por exemplo, nas ideias de Augusto Comte, na obra de Karl Marx, na obra de Nietzsche ou na obra de Marcuse. A modernidade entrou numa espiral alucinante de degradação ideológica, em que as teorias que aparentemente se opõem padecem da mesma patologia de base. Seria como se dos mesmos princípios errados se construíssem ideologias diversas [ou religiões políticas diferentes] e mesmo opostas entre si.

(Naturalmente que os admiradores de Nietzsche, por exemplo, dirão que este não defendeu a recusa da subjectividade e do indivíduo; e também poderão dizer que Nietzsche foi anti-utilitarista. Mas estão errados e em ambos os casos.)


Chegados aqui, perguntamos: como é que a actual política correcta, que se caracteriza pela defesa radical da autonomia do indivíduo, se pode compaginar com os três característicos gnósticos supracitados? Como é que alguém pode dizer, e ter razão, que a actual política correcta de defesa radical da autonomia do indivíduo se coaduna com a recusa gnóstica da subjectividade e do indivíduo?

A resposta a estas perguntas pode ser encontrada no livro de Herbert Marcuse “O Homem Uni-dimensional” : a estratégia tipicamente gnóstica, utilizada por Marcuse e pelo marxismo cultural, do “pensamento negativo”, que consiste em negar a realidade da natureza humana mediante a análise dessa realidade realizada a partir de um ponto de observação [putativamente] exterior a essa realidade humana — e [alegadamente], um ponto de observação superior a essa realidade humana [escapismo exterior e superior].

Por isso, podemos dizer que a política radical de autonomia do indivíduo é apenas um instrumento estratégico de acção política gnóstica que, através do enfraquecimento da coesão social e consequente atomização da sociedade, levará inexoravelmente ao poder uma minoria gnóstica de que nos fala Eric Voegelin na citação supra. E é isto que tem acontecido, mais ou menos de forma recorrente, na sequência das revoluções europeias a partir de meados do século XVII, embora o problema já venha da Reforma protestante [século XVI].

Para que tenhamos uma ideia das consequências das políticas gnósticas de autonomia radical do indivíduo, 47% dos suecos vivem sós nas suas casas [sem família]; ou melhor dizendo: 47% dos lares suecos são compostos apenas por 1 indivíduo. E o mesmo acontece na Noruega, com 40%; e na Alemanha, com 39%; e no Reino Unido com 34%. Nos Estados Unidos, a percentagem desce para os 27%, o que revela uma sociedade [ainda] saudável.

Uma sociedade em que quase 50% das pessoas vivem sozinhas e sem família, é uma sociedade à beira da atomização e do enfraquecimento da coesão social. É uma sociedade à beira de uma revolução gnóstica.

[continua]

5 comentários »

  1. Bom dia Orlando. Tudo aquilo que acabou de dizer é uma realidade assustadora, pois, é precisamente isso que está a acontecer. Encontrei na net uma livraria que vende livros de Eric Voegelin em português, dê uma vista de olhos: http://www.bulhosa.pt.

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    Comentar por Filipe Crisóstomo (@Skedsen) — Sábado, 21 Julho 2012 @ 9:24 am | Responder

    • A “Nova Ciência da Política” deve ser edição brasileira, a julgar pelo prazo de entrega.

      “As Religiões Políticas” é um opúsculo interessante mas básico.

      “Estudos de Ideias Políticas de Erasmo a Nietzsche”, não o li mas parece interessante; e também deve ser edição brasileira. Por isso é que eles querem o Acordo Ortográfico!

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      Comentar por O. Braga — Sábado, 21 Julho 2012 @ 9:35 am | Responder

  2. […] mas também foi — em certos vultos da patrística — imanente e escatológico. Como se viu no postal anterior sobre este assunto, os teóricos gnósticos (1) recusam a afirmação do sujeito e do indivíduo, (2) rejeitam a […]

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    Pingback por Breve nota sobre o gnosticismo da antiguidade tardia « perspectivas — Sábado, 21 Julho 2012 @ 10:01 am | Responder

  3. Porque o problema vem da reforma protestante?

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    Comentar por MARYAUXILIA (@MARYAUXILIA) — Quinta-feira, 14 Março 2013 @ 2:37 am | Responder

    • Resposta:

      “Quando começamos a contar, começamos a errar.” — Santo Agostinho

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      Comentar por O. Braga — Quinta-feira, 14 Março 2013 @ 10:50 am | Responder


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