Uma teoria passa a doutrina e dogmatiza-se. O princípio da entropia aplicado a qualquer sistema de ideias, com a passagem do tempo, tende a separar a ideia do real, quando esse sistema de ideias não se fundamenta em um princípio de ordem universal — ou seja, quando esse sistema de ideias não se fundamenta na cosmogonia e na ordem do universo que se seguiu a esse acontecimento primordial fundamental. Seja qual for a opinião que se possa ter acerca dos diversos mitos cosmogónicos presentes em todas as culturas humanas, estes explicam e fundamentam simbolicamente, através de metáforas, o que terá acontecido in illo tempore.
Gente como a Palmirinha Espertalhona Tapadinha pretende substituir o mito cosmogónico — no caso judaico-cristão, o mito da criação bíblica do Génesis — por um outro mito: o evolucionismo neodarwinista, que é uma espécie de teoria de Darwin aplicada a todo o universo. O filósofo Eric Voegelin (neo-kantiano) escreveu de um forma insofismável e irrefutável : “O criacionismo bíblico é um mito, e o evolucionismo darwinista é outro mito porque é impossível explicar a mutação das formas”. Eric Voegelin tinha toda a razão.
Sublinho a diferença entre “explicar” e “descrever”. A ciência descreve mas não explica, por muito que este facto incomode a Palmirinha Espertalhona Tapadinha.
Porém, a diferença entre os dois mitos a que se refere Eric Voegelin é que o mito cosmogónico explica e fundamenta a experiência subjectiva e intersubjectiva que o Homem tem da realidade, enquanto que o mito darwinista apenas descreve uma pequena parte da realidade — este último não explica nem fundamenta nada, porque a ciência positivista não pode nem deve assumir uma dimensão metafísica.
Ao contrário do mito cosmogónico religioso que fundamenta a ordem universal e impele o Homem a seguir modelos exemplares absolutos, o mito ateísta da Palmirinha Espertalhona Tapadinha é paralisante porque não insere plenamente o Homem no mundo, na medida em que deixa por explicar e fundamentar a origem da própria realidade. Neste sentido, podemos dizer, com toda a pertinência, que o ateísmo é a religião dos burros. Por isso é que a Palmirinha, para além de Espertalhona, é Tapadinha.
As religiões propriamente ditas não se preocupam com o conhecimento racionalista, como acontece com a filosofia ou com a ciência positivista. Quando uma religião descamba para o racionalismo, assume uma forma gnóstica — como é o caso do ateísmo da Palmirinha Espertalhona Tapadinha: é uma religião gnóstica (como o é também o cientismo), embora um monismo materialista na sua forma.
A dimensão da religião propriamente dita é ontológica. O mito cosmogónico intersubjectivo que fundamenta e explica a realidade não transforma os objectos do mundo em objectos de conhecimento : com a religião propriamente dita, não só os objectos do mundo, como toda a realidade, continuam a manter a sua densidade ontológica original.
Porém, a religião não é incompatível com a ciência ou com a filosofia exactamente porque a dimensão humana da religião é diversa das da ciência e da filosofia. É perfeitamente coerente que um cientista com o Nobel seja católico — há muitíssimos exemplos de cientistas de renome que são religiosos. Para se ter consciência disto é preciso ter estudado um poucochinho de filosofia, e dentro desta, a metafísica que é um ramo da filosofia — e a Palmirinha Espertalhona Tapadinha não dá mostras de o ter feito.
Adenda:
<a href="http://portal.ateu.com" rel="nofollow" target="_blank">Palmirinha Espertalhona Tapadinha</a>
Orlando,
Obrigado por me ajudar outra vez com esse código html. Sozinho, não estava a conseguir colocá-lo como deve ser. Agradeço-lhe também pelo restante texto, os seus comentários são sempre importantes para a perceber melhor a natureza deste movimento.
“As religiões propriamente ditas não se preocupam com o conhecimento racionalista, como acontece com a filosofia ou com a ciência positivista. Quando uma religião descamba para o racionalismo, assume uma forma gnóstica —como é o caso do ateísmo da Palmirinha Espertalhona Tapadinha: é uma religião gnóstica (como o é também o cientismo), embora um monismo materialista na sua forma.”
Um dos problemas dos ateístas militantes é confundirem determinada apologética religiosa, teologia e religião. Misturam tudo.
O truque deles passa por construir espantalhos sobre uma das duas primeiras, e depois convidar religiosos para “debates sérios e abertos”. Claro, se apologética ou teologia já são assuntos difíceis, com os espantalhos do neo-ateísta ainda se torna mais difícil dialogar a partir deles. O neo-ateísta aproveita a ingenuidade dos que lhe calham na rede, a maior parte das vezes nem começam por averiguar rigorosamente a maneira como o neo-ateísta expôs o problema, e depois sai a cantar vitória de que os religiosos são irracionais e ignorantes.
Penso que o antídoto para esse veneno ( demasiado óbvio), é apontar o espantalho do neo-ateísta e passar para o ataque. Antes de se discutir religião, o neo-ateísta deve justificar racionalmente o seu ateísmo. O ateísmo não passa a ser verdadeiro, mesmo dando como certo que algum religioso o é por ser ignorante.( e outro problema para o neo-ateísta é que o desmascarmos logo de início, como o maior ignorante envolvido na conversa)
Cumprimentos.
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Comentar por Jairo Entrecosto — Segunda-feira, 25 Outubro 2010 @ 2:44 pm |
Repare, Jairo Entrecosto, eu posso contestar uma determinada religião, mas isso não faz de mim um ateu. Por exemplo, eu critico a religiosidade dos índios da Amazónia que enterram ritualmente as suas crianças vivas. Mas para fazer essa crítica, eu tenho que saber a razão por que os índios fazem isso — ou seja, qual a origem dessa religiosidade. A ética cristã é importante para fazer essa crítica, mas ela será mais profunda e abrangente se eu explicar racionalmente o fenómeno. O que estou a fazer é um exercício racional quando descubro que os índios fazem isso devido ao mito do assassínio primordial comum a uma grande maioria das diferentes culturas em todo o mundo — que tem na Bíblia uma correspondência com a morte de Abel por Caim.
O que quero dizer é que a religião não é racional, no sentido de “racionalismo”. O que a apologética e a teologia fazem é estruturar a religião de forma a que casos como o dos índios da Amazónia não ocorram. De certa forma, a teologia racionaliza a religião. Mas com ou sem teologia, a religião é ontológica e não se preocupa com o conhecimento das “coisas do mundo” que surgiram depois dos acontecimentos primordiais que o formaram.
É absolutamente impossível separar o Homem de alguma forma de religiosidade. O Homem moderno dito “não-religioso” apenas reprime a sua religiosidade latente, colocando-a no fundo do seu inconsciente. E de repente, basta um fenómeno natural, como um tremor de terra, para que a sua alma neolítica surja à superfície do seu ser. Se a alma é um mito, o genocídio é apenas um problema de anestésicos fortes e adequados.
Será que é difícil às pessoas compreender isto ?
O problema dos ateus é que eles professam uma religião negativa, e a maioria deles não se dá conta disso. Tal como acontece com as religiões positivas, como é o Cristianismo, impera a subjectividade, como não pode ser de outro modo quando falamos de religião. A forma como eu sinto a minha fé é diferente da do meu próximo, e é a intersubjectividade que cimenta a comunidade religiosa. Por isso é que a Palmirinha diz que “cada ateu pensa à sua maneira”; pudera! Trata-se de uma religião negativa! Como acontece em qualquer religião, é a intersubjectividade ateísta que cimenta a religião negativa.
O que se passa é a luta empreendida por uma religião negativa (o ateísmo) contra uma religião positiva (o Cristianismo). E quando eu, como cristão, critico o integrismo fideísta islâmico que mata em nome de Alá, sai uma ateísta e diz: “Você não é coerente porque está a criticar uma religião!” Esse ateísta não se dá conta que a ética que o sustenta tem raízes cristãs…!
Portanto, quando lemos textos como o da Palmirinha, estamos a lidar com pessoas imbecis, ou então, com pessoas que se especializaram em comunicar com imbecis — e a imbecilidade muda de assunto ao sabor das épocas, para não ser reconhecida. Qualquer pessoa tem o direito a ser estúpida mas não pode exigir que a sua estupidez seja venerada. A única forma de lidar com essa gente é tratá-los como imbecis, porque não há lógica que os sustente.
Abraço.
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Comentar por O. Braga — Segunda-feira, 25 Outubro 2010 @ 3:31 pm |