perspectivas

Quarta-feira, 7 Julho 2010

O Neopuritanismo ou o Purificacionismo (2)

Hannah Arendt definiu como característica fundamental da mente revolucionária, gnóstica e totalitária, a capacidade do gnóstico moderno em definir a realidade como se estivesse na posse da verdade límpida e absoluta, em que os contornos da realidade são imbuídos de uma clareza inquestionável que desafia a própria ciência e até a substitui através do cientismo. O gnóstico e revolucionário não tem dúvidas absolutamente nenhumas acerca da sua visão da realidade, nunca se questiona nem admite que se coloquem questões sobre a sua mundividência. O gnóstico é o próprio Deus na Terra.

O Quénia, é um país com problemas graves de alimentação, de habitação, saúde pública e educação; um país com uma frágil democracia onde ainda há pouco tempo aconteceram fenómenos de violência étnica; um país em que existem problemas de desemprego endémico e muito fracas condições de trabalho. Muito recentemente (a 4 de Julho de 2010), Hillary Clinton referiu num discurso que a máxima prioridade da política externa americana para África é a implementação dos “direitos” dos gays e do “casamento” gay, e o Vice-presidente americano Joe Biden foi recentemente expressamente enviado por Obama ao Quénia no sentido de pressionar o governo queniano a ceder à prioridade máxima do governo americano em relação a África.

A expressão desta prioridade máxima obamista é cultural, na linha da “abolição da cultura” e dos valores definidos por Georg Lukacs quando fundou a Escola de Frankfurt. Porém, os gnósticos modernos vão mais longe: pretendem agora estender a acção das engenharias sociais, que pretendem alterar a natureza da estrutura fundamental da realidade, a países e povos que não têm uma cultura cristã e ocidental genuína e de raiz, como é o caso dos países africanos.

A obsessão gnóstica ocidental é de tal forma que não conseguem já discernir o facto de que a estrutura fundamental da realidade não depende só e apenas de uma mundividência cristã, mas antes é elemento comum a todas as culturas e religiões. O “casamento” gay é repelido pela cultura cristã, como é recusado pela cultura hindu ou budista, pela cultura dos bosquímanos australianos e dos pigmeus africanos, e mesmo pela cultura dos polinésios e esquimós. A imposição do “casamento” gay é uma forma de violência anti-cultural a nível global.

Como mencionado no ensaio de Ernest Sternberg, o filósofo francês Bernard-Henri Lévy — que desde Maio de 1968 se assumiu como um homem de esquerda — classifica a Nova Esquerda globalista e gnóstica como “Esquerda Zombie” e “Novo Barbarismo”. Quando a representante da diplomacia americana define como prioridade máxima para os países africanos a implementação do “casamento” gay no continente, temos todas as razões para crer que Bernard-Henri Lévy tem toda a razão: estamos em presença de uma nova barbárie.

Porém, os ideólogos americanos e europeus da nova barbárie esquerdista, de que Obama e Hillary Clinton são uns meros executantes ou mediadores, apostam naquilo a que Ernest Sternberg chama de “violência de proximidade”, que consiste em semear o conflito e a violência fora dos Estados Unidos, na esperança que os incêndios culturais violentos ateados no estrangeiro acabem por chegar e entrar pelos Estados Unidos adentro. Esses ideólogos e políticos gnósticos não se atrevem a defender directamente a violência revolucionária intra-muros, porque seriam punidos pelos americanos em eleições; por isso, preferem atear fogos no exterior (por exemplo, na Europa e na América Latina), esperando que os incêndios culturais por eles ateados no estrangeiro atinjam uma dimensão tal, que acabem por invadir o seu próprio país. A isto, Ernest Sternberg chama de “violência proxy”.

A expressão do novo tipo de acção violenta revolucionária já não se baseia nas guerrilhas clássicas dos movimentos de libertação tradicionais apoiados pelo marxismo-leninismo ortodoxo das décadas de 60 e 70 do século passado. Esse tipo de acção violenta é agora considerado obsoleto pela Nova Esquerda, e por isso é que movimentos de guerrilha clássica e guevaristas, como as FARC, são agora convidados pela Esquerda Zombie a sentar-se à mesa do poder político na América Latina.

O novo tipo de violência segue a receita de Georg Lukacs que decorre da síntese dos extremos ou síntese dos radicalismos. Quando a Escola de Frankfurt foi fundada em princípios dos anos 20, aderiram ao movimento não só comunistas ortodoxos, como também socialistas independentes, fenomenologistas radicais (como, por exemplo, Heidegger), Sionistas (como Walter Benjamim), freudianos renegados, membros da maçonaria radical, e mesmo membros de cultos religiosos da fertilidade feminina de Astarte. Gente tão diferenciada e de origem tão diversa tinha um objectivo em comum: a fé metastática, a crença segundo a qual é possível mudar a natureza fundamental da realidade do universo através do conhecimento (gnose).

A fé metastática traduz uma forma de religiosidade gnóstica moderna, em que o Homem gnóstico é considerado divino, e na sua condição divina, o gnóstico é capaz de subverter a ordem cósmica — a rebelião contra o cosmos, que caracterizou também os gnósticos da antiguidade tardia — e a natureza fundamental do universo, alterando-a a seu bel-prazer. Trata-se de uma doença mental e de uma patologia social. Para alterar a natureza fundamental da realidade, os gnósticos modernos assassinaram mais gente em guerras, só no século 20, do que todas as guerras juntas desde o século III a.C. até ao século XIX.

Segundo o gnóstico e neopuritano inglês George Galloway, referido no ensaio de Ernest Sternberg, o Império é responsável por causar todas as mortes que um mundo novo, gnóstico e perfeito, evitaria. Isto significa que, para Galloway, num mundo novo, gnóstico e perfeito, não existiriam mortes — ao mesmo tempo que o aborto passa a ser considerado pelos novos gnósticos não só como um direito inalienável, mas como um dever para salvar o planeta (a escatologia apocalíptica gnóstica), e o gnóstico radical Peter Singer compara o estatuto da vida de um recém-nascido ao de um peixe.

A nova forma de violência revolucionária e gnóstica baseia-se no conceito da síntese dos extremos, e apoia-se em grupos ou comunidades que tenham como objectivo combater o Império. Assim como acontecia nos gnósticos da antiguidade tardia, o Império que os gnósticos modernos combatem é o bode-expiatório dos males do mundo que não deveriam existir, e esse Império traduz-se em uma espécie de mundo ou universo criado pelo demiurgo (o falso deus) que se opõe ao Pleroma (o verdadeiro deus). Para os gnósticos modernos — como José Saramago —, assim como para os gnósticos mais antigos — como Joaquim de Fiore ou os puritanos ingleses —, o mundo é passível de ser perfeito, um autêntico paraíso na terra, destituído de todo o Mal.

O Mal do mundo tem origem no demiurgo (o Império) e cabe aos eleitos gnósticos (os modernos “pneumáticos”) erradicar todo o Mal do mundo, transformando-o num paraíso na Terra. Para conseguir esse objectivo, os gnósticos acreditam que através do conhecimento são capazes de mudar as leis da natureza e do universo— a alteração da natureza fundamental da realidade —, tornar obsoletas as leis da física e da ciência através de uma fé metastática: acreditam que quando o mundo e todas as pessoas se convencerem de que a realidade é ao contrário e às avessas da que existe, então a realidade passa a ser ao contrário e às avessas.

Hannah Arendt definiu como característica fundamental da mente revolucionária, gnóstica e totalitária, a capacidade do gnóstico moderno em definir a realidade como se estivesse na posse da verdade límpida e absoluta, em que os contornos da realidade são imbuídos de uma clareza inquestionável que desafia a própria ciência e até a substitui através do cientismo. O gnóstico e revolucionário não tem dúvidas absolutamente nenhumas acerca da sua visão da realidade, nunca se questiona nem admite que se coloquem questões sobre a sua mundividência. O gnóstico é o próprio Deus na Terra.

3 comentários »

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    Pingback por O mundo às avessas! – hora absurda 7 — Quarta-feira, 7 Julho 2010 @ 12:44 pm | Responder

  2. Por favor amigo, como chegou a esta definição de Hannah Arendt?

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    Comentar por Rogério Alvarenga — Segunda-feira, 2 Abril 2012 @ 5:06 am | Responder


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