perspectivas

Domingo, 20 Junho 2010

A evolução do gnosticismo até à sua expressão moderna (9)

O desaparecimento da personagem José Saramago veio alterar a ordem temática que eu pretendia para esta série de postais.

É possível que seja difícil, para alguns leitores, distinguir a religião normal e saudável, da religiosidade gnóstica, e que seja confuso estabelecer uma ligação de continuidade entre o gnosticismo antigo e o moderno. As pessoas pensam mais ou menos assim: “se Saramago se dizia ateu, como pode ele ter alguma coisa a ver com o gnosticismo antigo que era eminentemente metafisico ?”

Símbolo da seita gnóstica dos Ofitas

Desde logo, quem faz a pergunta parte de um erro ao classificar o gnosticismo antigo como sendo “metafisico”. A metafísica propriamente dita não é anticósmica e antifilosófica (como é característica do gnosticismo de todos os tempos); pelo contrário : mesmo em religiões em que não é dada grande importância à especulação filosófica sobre a transcendência — como é o caso do Confucionismo — os aspectos da tradição religiosa nunca foram renegados ou criticados. Confúcio estabeleceu o Jen ou regras da ética, e não especulou sobre a transcendência porque dizia ele que “não podia descrever a sua [dele] certeza” acerca da realidade metafísica, mas não deixou de seguir os ritos da religião imperial chinesa e o culto dos antepassados existentes na China do seu tempo. Confúcio é o exemplo do verdadeiro filósofo, que é aquele que não renega qualquer estrutura da realidade (seja ela cósmica ou metafísica), ou seja, tem uma posição contra o gnosticismo em todos os tempos.

As dificuldades em estabelecer um paralelismo ou uma linha evolutiva entre o gnosticismo antigo e o moderno, são evidentes — assim como existe uma evidente dificuldade em estabelecer uma linha evolutiva entre a religião das forças impessoais da natureza e o culto feminino da fertilidade do neolítico, por um lado, e as religiões superiores do princípio da História, por outro.

Não é possível estabelecer uma conexão entre dois fenómenos culturais sem atender à diferenciação cultural que se prende com aspectos do tipo de organização social vigente em cada época histórica. A sofisticação da agricultura através da roda e do arado, o trabalho dos metais do Calcolítico, prenderam o Homem à cidade muralhada, e aquele que era o culto dominante no paleolítico e no neolítico passou a ser, até certo ponto, a religião a renegar. Surgiu então a transformação (por diferenciação cultural) do culto das forças impessoais da natureza na antropomorfização das divindades — as divindades passaram a ter uma concepção e forma humanas. Surgiu, então, o politeísmo clássico e o henoteísmo, característicos das religiões superiores do princípio da História.

Um fenómeno similar ocorreu na transformação do gnosticismo antigo para o gnosticismo moderno, de que Saramago é um excelente exemplo (Althusser foi outro caso recente de gnosticismo moderno radical). Porém, existem formas mitigadas de gnosticismo moderno, como as que se escondem por detrás do marxismo cultural, de que Juergen Habermas é um bom exemplo vivo e actual.

O carácter antifilosófico do marxismo é evidente e não merece aqui uma linha. Por isso é que é uma falácia e uma contradição alguém dizer-se “cristão” e, simultaneamente, “marxista”, porque o Cristianismo (à semelhança do Confucionismo) pressupõe a aceitação da existência das várias e diversas estruturas da realidade — pressupõe a validade da filosofia. A própria anti-filosofia do marxismo — e das religiões políticas modernas em geral — revela o seu cariz anticósmico. O que mudou, entre o gnosticismo antigo e o moderno, foi a forma como a concepção anticósmica gnóstica se revelou e passou a expressar-se. E esta mudança deve-se à diferenciação cultural causada essencialmente pelo Iluminismo e pelo desenvolvimento da Técnica.

Podemos dizer que o gnosticismo antigo era um movimento religioso anticósmico com uma obsessão em relação à cosmologia. Esta aparente contradição deve-se a um fenómeno de antipatia mimética em relação às religiões propriamente ditas. De modo semelhante, o ateísmo de Saramago (e de outros) tinha como característica uma obsessão em relação à religião — ou seja, uma expressão da antipatia mimética em relação àquilo que se renega sem fundamento racional. Quando renegamos uma coisa de uma forma irracional, e consequentemente nos fixamos obsessivamente nela, temos tendência a desenvolver uma especulação ideológica que não admite excepções às nossas crenças daí resultantes.

Além da característica anticósmica do gnosticismo de todos os tempos, segue sempre em paralelo a característica tipicamente gnóstica da exigência intolerante do unanimismo absoluto em relação à oposição à coisa renegada.

Olavo de Carvalho caracterizou a mente revolucionária (link) — que é o exemplo do gnosticismo radical moderno — em três aspectos essenciais, e um deles é a inversão da moral. Através da inversão da moral, o gnosticismo pretende fazer prova de um “conhecimento mais profundo” da realidade que se expressa através de uma pretensa “superioridade” intelectual dos gnósticos em relação ao comum dos mortais. Essa pretensa e assumida “superioridade intelectual” do gnosticismo traduz-se em uma “superioridade moral” que vemos nos marxistas (incluindo o marxismo cultural). O gnóstico faz, assim, prova da sua “superioridade” intelectual e moral em relação aos Hílicos (Google) de todos os tempos, invertendo os papéis do bem e do mal, do sublime e do básico, e do sagrado e do profano que encontrou na tradição cultural e religiosa.

Uma seita gnóstica antiga, conhecida pela designação de Peratas (Google), desenvolveu a mesma ideia de José Saramago no seu último livro, com o título “Caim”.

Os Peratas reinterpretaram a estória de Caim de uma forma antitética. Sendo que Abel era o favorito do Deus judeu que os gnósticos não reconheciam como sendo Deus mas antes consideravam como sendo um falso Deus e um demiurgo maligno, Caim passou a ser, para os Peratas como para Saramago, o herói que se opôs ao mal.

O que se passa — tanto no gnosticismo antigo dos Peratas, como no gnosticismo moderno tipificado por José Saramago — não é tanto um esforço de exegese das escrituras bíblicas, mas antes uma tentativa de rescrever a História. E esta tendência do gnosticismo de todos os tempos para rescrever a História leva-nos a outra característica essencial da mente revolucionária segundo Olavo de Carvalho: a inversão do tempo.

4 comentários »

  1. Excelente texto interpretativo daquilo que muitos querem ignorar.

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    Comentar por Menina Marota — Domingo, 20 Junho 2010 @ 2:07 pm | Responder

  2. Ainda não consigo ver ligação do gnosticismo com a esquerda e o marxismo atual. O gnosticismo é sim metafísico, talvez não no que você entenda como metafísico, apenas questão de linguagem. Os gnósticos acreditam em transcendência, algo que existe no homem e que manifesta o absoluto, incriado. Isso para mim é, a grosso modo, metafísica. Também não o considero como sendo antifilosófico, o que é a filosofia senão a investigação daquilo que acreditamos ser a realidade? O gnóstico também estuda suas verdades, coletivamente ele não adimite heterodoxia por motivos esotéricos.

    Não existe “gnosticismo moderno”. O gnóstico verdadeiro sabe que o conhecimento -gnose- é intemporal. Você pega aspectos EXOtéricos comuns do gnosticismo, o de ser anticósmico, e liga isso com o marxismo porquê o mesmo não aceita a “realidade” e quer transforma-la, mas o gnóstico não quer transformar “realidade” nenhuma, existe algo nele que ele acredita ser a única fonte de verdade e ele quer mergulhar em suas águas, a intenção do gnostico nunca foi de transformar nada, salvo sua própria conduta dentro de um mundo que ele considera ilusório.

    Também não existe “superioridade intelectual” do gnóstico, ele não acredita no intelecto, na razão. Para ele a razão é fruto de sistematizações que são feitas “mecanicamente” no cérebro, assim como rejeita algumas emoções que são consequências de certas circustâncias mundanas. Olavo de Carvalho se sente superior a qualquer esquerdista, gnóstico ou outra coisa que esteja além do que ele acredita ser a realidade e a tradição. O marxista não se sente moralmente superior a ninguem, ele defende a verdade dele e quem discorda está “errado” ou é inferior, mas isso todos fazemos. Cristãos, Judeus,conservadores, liberais, ou qualquer outro grupo fará da mesma forma.

    “Excelente texto interpretativo daquilo que muitos querem ignorar.” diz o comentário acima, o que é isso senão um tipo de “superioridade” em relação aos ignorantes?

    Acho que é um excelente texto interpretativo daquilo que o autor quer ver. Assim como Olavo também faz, tudo o que foge a judaico-cristianismo, religioes universais e filosofia tradicional é de esquerda e é igual, farinha do mesmo saco.

    Seus textos são muito bem escritos e o conhecimento lhe é factivel, mas acho que você está equiparando um homem a um robô, externamente pode ser igual, executar açoes semelhantes, mas nunca serão a mesma coisa.

    Abraços do Brasil.

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    Comentar por Bravo — Domingo, 20 Junho 2010 @ 6:32 pm | Responder

    • « Só vale a pena discutir com pessoas com as quais estamos de acordo quanto aos pontos fundamentais; só aí se mantém, na pesquisa, a fraternidade essencial ; tudo o resto é concorrência, batalha, luta pelo triunfo; não menos reais por serem disfarçados.» — Agostinho da Silva

      Mesmo que eu lhe demonstrasse, por 1+1, a ligação entre o gnosticismo e o marxismo, você diria que não existe ligação nenhuma, porque como escreveu o filósofo Agostinho da Silva, a “concorrência, a batalha e a luta pelo triunfo” são obstáculos à razão.

      Quando eu digo que o gnosticismo não é metafisico porque é anticósmico, você diz que o gnosticismo é metafisico, porque sim. Os gnósticos (leia-se, a esquerda) detestam definições; normalmente dizem que as coisas são como são, porque são como são, ou porque sim!

      A verdade é que uma teoria genuinamente metafísica nunca pode ser anticósmica. Você tem falta de prática.

      Eu posso dizer que acredito na transcendência para combater as religiões que acreditam na transcendência através de uma posição fundamental anticósmica. Dá para entender? É isso o que eu chamo aqui de “antipatia mimética”.

      Quando você diz que a teoria de Karl Marx não é antifilosófica, revela ignorância. Eu deixei passar o seu comentário mas confesso que estive quase para o não o publicar, porque quando as pessoas escrevem sem saber o que estão a dizer, torna-se muito difícil e trabalhoso elucidá-las. Se você tivesse feito uma pergunta, em vez de uma afirmação, dar-me-ia mais gosto escrever estas linhas.

      Existem várias expressões antifilosóficas na obra de Karl Marx. Vou citar apenas uma:

      « Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes modos; do que se trata é de o transformar. » — Karl Marx, Os Manuscritos Económico-Filosóficos, tradução portuguesa de César Oliveira, Porto, 1971, p.168.

      Se isto não é ser antifilosófico, não terei nunca maneira de convencer você do contrário.

      Como se pode ver, qualquer pessoa com dois dedos de testa já constatou que os seus dois primeiros argumentos do seu comentário, não colhem. Eu poderia ir até ao fim do seu comentário, continuando a rebatê-lo ponto por ponto, mas o trabalho que eu teria não o iria convencer da sua posição falaciosa, e portanto, não vale a pena manter uma discussão que se baseia na “concorrência, batalha, e luta pelo triunfo”, e não Razão, a que a esquerda gnóstica tem horror em nome de um unanimismo ideológico que busca o novo Pleroma: o paraíso na terra através da alteração das estruturas fundamentais da natureza e da realidade.

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      Comentar por O. Braga — Domingo, 20 Junho 2010 @ 8:49 pm | Responder

  3. Lembremos que o conhecido Antônio Labriola, chegou a conclusão que o pragmatismo e o marxismo são a mesma coisa. O Pragmatismo de Richard Rorty a semelhança do marxismo, unidos, pregam o fim da filosofia.

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    Comentar por shâmtia ayômide — Segunda-feira, 21 Junho 2010 @ 1:47 pm | Responder


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