Este texto faz, de forma parcial, referência à refutação por parte de Aristóteles à teoria das Ideias de Platão (Metafísica de Aristóteles). Diz-se: “a potência para ser real, há-de ser potência de algo existente, portanto, já em acto em respeito ao ser”; e a seguir: “(…) nada impede pensar em um Acto Puro, não limitado por potência alguma…”

Sólidos platónicos
É preciso ter em conta que tanto Aristóteles como Platão movem-se no mundo da imanência. Imanência não é a mesma coisa que transcendência. Os deuses gregos eram intracósmicos — não transcendiam o universo; Zeus era um demiurgo na verdadeira acepção da palavra. Aristarco de Samos foi simbolicamente condenado à morte por ter dito que era a Terra que se movia em torno do Sol e que as estrelas não rodopiavam à volta da Terra, precisamente porque Aristarco colocava assim em causa a existência da morada dos deuses gregos — era suposto a Terra ser o centro do universo, explicando-se assim a existência do Olimpo.
Tanto Aristóteles como Platão não conseguiram demarcar-se totalmente da sua herança cultural cosmológica. Mais tarde, durante a escolástica cristã, as doutrinas gregas — tanto a de Aristóteles como a de Platão através de Plotino — foram “recicladas” através da introdução das mundividências cristã da patrística e do judaísmo; e aqui, sim, as filosofias de Aristóteles e Platão foram reinterpretadas e ganharam também uma dimensão transcendente. É sempre importante, contudo, fazer a distinção entre imanência e transcendência, porque ambas as dimensões pertencem à realidade — conforme demonstrado pela quântica.
A teoria quântica demonstrou que Aristóteles estava errado quando refutou a teoria das Ideias de Platão, e que embora tendo em conta a amálgama ideológica de Platão, este estava mais próximo da realidade. Para nos explicarmos melhor, e assim como substituímos o termo “acto” pelo termo “evento”, teremos que substituir o termo “potência” pelo termo “onda quântica”.
Podemos dizer com toda a segurança que, em termos daquilo que a ciência entende por “matéria”, a onda quântica não é nada; podemos constatar que ela existe mas não a podemos definir. Os cientistas quânticos, à falta de melhor definição, referem-se a ela como sendo “pré-matéria”.
O conceito de “função ondulatória quântica” — que não é a mesma coisa que “onda quântica” — prevê a característica da complementaridade onda/partícula; a onda quântica pode “transformar-se” em partícula, e depois dessa “transformação” passa a existir matéria, entre outras razões porque a partícula tem massa. Entende-se aqui por “partícula” não só as partículas elementares longevas entendidas colectiva ou individualmente (electrões, neutrões, positrões, etc.) mas também a estrutura atómica como um todo — um átomo pode “entrar” em “modo” de onda quântica.
Experiências em laboratório demonstraram que a simples observação de uma onda quântica, por parte de uma consciência, “transforma-a” automaticamente em partícula (ou seja, em matéria). Portanto, existe aqui a componente da “consciência” que não estava rigorosamente presente em Aristóteles e Platão. A consciência remete para o transcendente, enquanto que o pensamento (ou ideia, ou forma) é produto da acção da consciência na sua condição material (ligada a um hardware do espaço-tempo, nomeadamente, um cérebro). Quando uma consciência observa uma onda quântica, através do pensamento “interfere” na sua condição enquanto onda e transforma-a em partícula, porque o próprio pensamento utiliza os meios de acção que são próprios da onda quântica (não-localidade). Porém, a acção do pensamento não existe sem a consciência, e existem diferentes graus de consciência.
Aquilo que “existe em potência”, existe em estado de pré-matéria, e pode ser condicionado pela acção da consciência através do pensamento. Através da acção da consciência, o que era antes “potência” transforma-se em “acto” — a onda quântica transforma-se em evento (ou em matéria; ou em acontecimento; ou em acto — para o caso, significa o mesmo).
Só se poderia entender como “acto puro” a condição da existência da consciência, na medida em que dela depende a materialização das possibilidades da onda quântica em eventos. Só neste sentido podemos falar em “acto puro”. Mas esta analogia não é lógica porque estamos a falar de realidades diferentes e que não podem ser comparadas em um mesmo plano: a consciência é transcendente, enquanto que a possibilidade do evento no espaço-tempo é imanente. Portanto, utilizar o termo “acto puro” em relação à consciência é uma figura de estilo ou expressão simbólica.
As formas ou ideias são produto da consciência manifestando-se em um mundo pré-material da onda quântica, assim como as partículas que determinam os eventos do espaço-tempo o são. As formas ou ideias são imanentes; os eventos pertencem ao mundo material da realidade concreta e objectiva. Portanto, na dimensão do espaço-tempo, pode existir potência (onda quântica ou pré-matéria) sem acto (evento ou matéria), mas não pode existir acto sem potência.
Deus só pode ser concebido como “acto puro” na medida em que é a consciência absoluta que transcende o cosmos. E não é claro que tanto Aristóteles como Platão tivessem uma noção íntegra de transcendência que o cristianismo mais tarde acrescentou. Na medida em que a consciência é a condição da existência espaço-temporal, só nessa medida podemos referir-nos a ela como “acto puro”.
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