perspectivas

Sábado, 1 Maio 2010

A ucronia de António Sardinha

Filed under: Política,Portugal — O. Braga @ 12:44 am
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Perante este texto de António Sardinha, cabe-nos, pelo menos, fazer três perguntas: 1) O que é que ele defende? Em função da resposta a esta, vêm as duas seguintes: 2) Onde é que ele está certo ? E, a existirem incoerências, 3) Onde é que ele erra?

António Sardinha defende a ideia de que a revolução francesa — porque é desta a que se refere, embora tivessem existido outras anteriores, como a inglesa de 1688 e a própria Reforma de Lutero, já para não falar na revolução cultural do Renascimento — desencadeou um processo acelerado de decadência civilizacional na Europa. Mas será que o processo revolucionário foi idêntico nos Estados Unidos? Penso que não, mas deixemos isso agora, embora Sardinha meta tudo no mesmo saco.

Essa decadência civilizacional europeia referida por Sardinha é inquestionável; basta olhar para o esforço que é feito hoje para levantar do chão uma civilização moribunda através da construção da União Europeia. Porém, esse esforço da construção do leviatão europeu é ele próprio consequência da prevalência do gnosticismo revolucionário que se afirmou na Europa a partir da revolução francesa — ou seja, a tentativa de restaurar hoje a Europa falha pela falência dos seus próprios pressupostos culturais e civilizacionais; é como se tentássemos apagar um incêndio em uma casa deitando gasolina sobre as labaredas. Portanto, neste particular António Sardinha está certo.

Se Sardinha critica a revolução francesa e Rousseau, existem muitos traços ideológico comuns entre Sardinha e Rousseau. E aqui começam as contradições de Sardinha.

Sardinha confunde “democracia” com o “Império da Vontade Geral” de Rousseau saído da revolução francesa — que não era uma democracia mas antes uma “aristocracia electiva”; quem diz que “Rousseau defendia a democracia”, não tem razão — que se constituiu como sendo a base ideológica da revolução francesa. E até certo ponto, o próprio Sardinha é influenciado por esse conceito de Vontade Geral de Rousseau quando defende o corporativismo, sabendo nós que Rousseau era fortemente avesso à independência política das organizações da sociedade civil — ou seja, Sardinha critica a revolução francesa que foi consequência das ideias de Rousseau, ao mesmo tempo que perfilha e aceita o conceito de Vontade Geral de Rousseau que, por sua vez, foi beber ao “Leviatão” de Hobbes. Podemos encontrar muitas incoerências deste tipo em António Sardinha.

Rousseau substituiu o soberano (o rei) e o governo de Hobbes por uma entidade metafísica embora não incorporada em qualquer órgão visível do Estado. A vontade dessa entidade metafísica — a que Rousseau chama metaforicamente de “soberano” — é sempre justa: é a Vontade Geral. Cada cidadão, enquanto cidadão, participa da Vontade Geral. Embora o cidadão possa ter uma opinião privada e particular que pode ser contrária à Vontade Geral, o Contrato Social implica que se alguém se recusar a obedecer à Vontade Geral, deve ser obrigado a fazê-lo — ou seja, nas palavras do próprio Rousseau: “Isto significa nada menos do que obrigá-lo a ser livre”. Podemos ver em Sardinha a mesma aversão à liberdade quando este defende que o cidadão deve ser obrigado a ser livre. Mais uma vez, Sardinha critica a revolução francesa e segue a ideologia que lhe deu origem.

Esta ideia de “obrigar a ser livre” é comum a Rousseau e a Sardinha, na medida em que se baseia em uma ideia gnóstica que perverte a metafísica cristã; ambos confundem dois planos diferentes da realidade: a terrena e a transcendente.

Não nos podemos esquecer que, tal como António Sardinha, Rousseau (assim como o seu discípulo Robespierre, que Sardinha tanto critica) era irredutível na sua fé em Deus. Colocar em causa a existência de Deus era para Rousseau um insulto; e da consequente revolução liderada pelo teísta gnóstico Robespierre, nasceu o secularismo ateísta europeu.

Sardinha subestima os efeitos sociais e culturais da revolução industrial. Embora em situações históricas e argumentos diferentes, a aversão à propriedade privada (o anti-capitalismo de Sardinha) é comum a Sardinha e a Rousseau, neste último através do “Discurso sobre a Desigualdade” (1754). A diferença é que Sardinha é aristocrata (nietzscheano na exaltação da virtude da diferença pela diferença, embora crente em Deus), e de Rousseau não podemos dizer que seria a favor de uma democracia mas antes de uma “aristocracia electiva” (que é diferente de uma aristocracia com eleições mais ou menos livres, como a que existiu em Inglaterra no tempo da rainha Vitória, século XIX). Para Rousseau, “o Estado, em relação com os seus membros, é senhor de todos os bens” — e mais uma vez temos aqui algo em comum com António Sardinha (e com Hegel!) — escreve Sardinha: “a lei antiga da honra que sujeitava as fortunas ao interesse da colectividade”; esta “colectividade” de Sardinha, é o Estado.

A “honra” de que fala Sardinha na frase supracitada não é possível ser restabelecida por uma outra revolução; as revoluções geram novas revoluções em um ciclo perpétuo. E a contradição de Sardinha é a de criticar a revolução de Rousseau ao mesmo tempo que defendia outra revolução que nos livrasse da revolução gnóstica e jacobina escorada nas ideias do ideólogo francês; Sardinha tornou-se cativo da mente revolucionária.

Em suma: embora concordando com Sardinha no diagnóstico, não concordo com a prescrição para a cura da maleita — e sobre esta “cura”, escreverei eventualmente noutro postal. Não é possível voltar atrás no tempo. Defender hoje o Integralismo Lusitano é uma ucronia. Para além disso, a minha discordância em relação ao Integralismo Lusitano tem a ver também com a atitude revolucionária e de exaltação de tipo nietzscheana/gnóstica que ele próprio critica nos jacobinos.

Por fim, e sobretudo isto: é preciso notar que a defesa da monarquia não é exclusiva do Integralismo Lusitano. Pelo contrário, existe uma contradição intrínseca entre a monarquia tradicionalista e uma certa ideia revolucionária implícita no Integralismo Lusitano segundo António Sardinha, que a aproxima do revolucionarismo gnóstico — embora formalmente católico — de Julius Evola. A religião cristã, para Sardinha e Evola, é um meio de acção política e não um fim em si mesma.

2 comentários »

  1. […] […]

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    Pingback por Anónimo — Domingo, 2 Maio 2010 @ 11:25 pm | Responder

  2. […] sequência deste postal sobre António Sardinha, em que lhe reconheço a razão sobre o diagnóstico da modernidade, é importante que a […]

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    Pingback por A Guerra Cultural « perspectivas — Segunda-feira, 3 Maio 2010 @ 11:55 am | Responder


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