O substantivo adjectivado “filisteu” tem uma conotação pejorativa e está ligado ao utilitarismo da nova burguesia da “boa sociedade” do século XIX que via no objecto de arte, ou um artigo vendável e passível de lucro, transformando assim o objecto de arte num objecto de consumo, ou numa forma de se afirmar na sociedade através da exibição ostensiva de “cultura”. A imagem do filisteu era a do indivíduo que coleccionava obras de arte não pelo amor desinteressado à arte e à beleza, mas pela utilidade que essa colecção lhe traria, seja em dinheiro, seja em status social. O filisteu era um utilitarista.
Com a sociedade de massas, a “boa sociedade” desapareceu ― ou pelo menos não assume o protagonismo que tinha noutros tempos. Falamos hoje de “alta sociedade” ou de VIP’s, mas a “boa sociedade” tal qual existia no século XIX já não existe. A “cultura de massas” é um eufemismo, porque na realidade não existe; o mais que podem existir são “culturas de massas”, porque elas são tantas que se aproximam do número de culturas inerentes a todos os indivíduos per se.
O filisteu contemporâneo, salvo excepções, já não dedica o seu utilitarismo inato à arte porque esta já não lhe dá nem o estatuto social nem o retorno imediato de investimento do capital que deu noutros tempos. Em certa medida, o artista é hoje mais livre porque deixou de ser acossado pelos abutres do filistinismo dos fins do século XIX e princípio do século XX. A própria arte moderna do princípio do século XX nada mais foi que uma reacção dos artistas contra essa “boa sociedade” apinhada de filisteus.
O utilitarismo do filisteu contemporâneo ― o filisteu actual ― ignora a arte e o belo, e passou-se para a técnica. O filisteu actual (ou o filisteu em acto, o que actua) é o técnico por excelência. É o indivíduo que vê o mundo que o rodeia como uma mera engrenagem da qual pode, de algum modo, retirar vantagens sejam estas de estatuto social ou pecuniárias. O filisteu actual é a caricatura do alemão que não faz absolutamente nada sem um livro de instruções para cada circunstância; até o simples acto sexual é passível de um Kama Sutra ou de outro qualquer manual de operações.
O filisteu actual não faz análises de situação: segue fiel e caninamente as sínteses dos maiorais e dos líderes de opinião nas diversas áreas da técnica. Não lhe interessam as explicações, mas apenas as conclusões “pronto-a-vestir”. É o “homem sem qualidades” de Musil ― o homem que não acredita no carácter pessoal e humano como chave para o entendimento das coisas, mas antes na lógica impessoal dos sistemas e da técnica; o mundo, para ele, só é inteligível à luz da técnica. É nesta dependência da técnica que jaz o seu utilitarismo, porque o primado da técnica assume-se como capaz de fazer desaparecer a importância do carácter do homem nas relações humanas que assim passam a ser apenas um conjunto de meras transacções utilitárias.
Porém, o mais grave do filistinismo actual é que substituiu a política pela técnica; ou melhor, confunde as duas coisas. A política é vista como a aplicação da técnica aos assuntos humanos; a política passa a ser sujeita a meios e fins como um qualquer produto fabricado numa qualquer linha de montagem industrial. Como um qualquer produto acabado, a política é consumida e defecada no processo vital do filisteu actual. E não há nada — absolutamente nada! — nem nenhum argumento ou evidência que possa convencer o filisteu actual de que ele está certo ou errado em qualquer coisa, porque ele nunca tem a certeza ou a incerteza de nada ou mesmo a simples convicção da probabilidade de poder estar próximo da certeza ou da incerteza sobre alguma coisa: para o filisteu actual, a mera possibilidade de alguma coisa não existe sem a a lógica impessoal da técnica como sistema de garantia de validade do mundo ― é a técnica a única coisa que o mantém em um equilíbrio precário que lhe permite “levar a vidinha”.
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