perspectivas

Quarta-feira, 5 Março 2008

Ding an Sich

O século 20 foi o século da ciência entendida, sob o ponto de vista filosófico, como a prova da total materialidade do ser humano; foi o século do unanimismo filosófico materialista politicamente correcto.

Enquanto a ciência avançava trazendo à espécie humana a esperança no desconhecido, a filosofia moderna e contemporânea – em geral – transformou o mundo do ser humano num ambiente limitado, antropocêntrico e separado do universo, redutor na sua essência, e tornou o Homem num ser tão descartável como tudo o que tem um valor exclusivamente material.

Personagens como Josef Mengele, por exemplo, não são tanto um produto da ciência como são dessa filosofia do fim do milénio que se proclamava como detentora da verdade acerca da essência material do Homem – coisa que a ciência nunca se atreveu a proclamar porque não o podia fazer segundo a sua própria lógica; a ciência pura só afirma o que pode provar através da análise e extrapolação analítica decorrente dos “Fenómenos” (experimentalismo), e mesmo assim, com as reservas que a probabilística veio introduzir depois da morte do determinismo científico (Einstein, Heisenberg).

O fenómeno da redução do Homem a um mecanismo que reflectia a “causa” da vida como derivada do puro “acaso” (1), que Dawkins defende hoje em nome de uma “ciência” que se confunde com o materialismo filosófico, começou com um paranóico que era mais um romancista do que um filósofo: Nietzsche. Juntaram-se a ele os “Utilitários” (Bentham, James Mill, Stuart Mill), que transformaram as minorias sociais e os seres humanos mais fracos em “danos colaterais”, e descreveram o hedonismo como o “único bem” do ser humano.

Karl Marx (a arrogância do “Fim da História”), Gramsci, Lukacs (a necessidade da morte do espírito humano para o triunfo da revolução marxista), Marcuse e Adorno (“Teoria Crítica” e “Utopia Negativa”), Russell (Ética do Desejo), Heidegger (o ser humano definido como sendo uma “defecação” de uma “existência anónima”), Hayek (do cepticismo de Hume à Cultura como sendo “um conjunto de meras tradições” e passível de transformação através de engenharias sociais coercivas), Sartre (o “absurdo” como única realidade existencial) e Michel Foucault (o filósofo-pedófilo, e como tal assumido publicamente pelo próprio) compõem o ramalhete do materialismo filosófico. Da filosofia do século 20, salvam-se Wittgenstein e porventura alguns fenomenologistas, como Husserl e Scheler, e pouco mais.

O cenário é deprimente.


“Se não conhecemos a substância das coisas materiais, mas somente a sua aparência fenoménica, que esperança podemos ter de atingir um dia, a partir de indícios materiais, isto é, letras impressas numa folha de papel, a substância da filosofia de Immanuel Kant?Olavo de Carvalho, sobre a “coisa em si” de Kant (via)

“O saber da ciência já destruiu a “coisa em si” mesmo antes da bomba atómica” – Heidegger (escritos de 1958)

Paradoxalmente porque vindo de pessoas tão diferentes, estas duas citações significam exactamente a mesma “coisa em si” – e no entanto, foram ambas escritas em folhas de papel.

O conceito kantiano de “coisa em si”, ou de “númeno” (que significa o mesmo) fundamenta-se na teoria racionalmente irrefutável de Kant sobre o limite perene do conhecimento, inerente ao ser humano (2), que a ciência reconhece todos os dias e que o materialismo filosófico, na sua substância e na sua teleologia, não reconhece e não assimila, na medida em que o seu reconhecimento se traduziria imediatamente num niilismo existencial.
A substância da filosofia numénica de Kant é eminentemente apodíctica e, por isso, não carece de provas ou indícios materiais. É espantoso como Olavo de Carvalho parece não ter compreendido isto, porque de Heidegger penso que não o quis compreender por razões óbvias.
A “coisa em si”, ou “númeno”, traduz a realidade conceptual apodíctica, isto é, os conceitos que não sendo passíveis de comprovação empírica, não deixam de existir porque podem ser pensados de forma racional.

“É a matemática que nos dá a chave para abrirmos as portas secretas da natureza. Este conceito não é facilmente apreensível por todos, mas para aqueles que se expressam na linguagem matemática, a beleza matemática é uma qualidade evidente e reconhecida. Em suma, a matemática desponta da livre exploração racional da mente humana, o que parece indicar que as nossas mentes estão de tal modo sintonizadas com a estrutura do Universo que são capazes de penetrar nos seus segredos mais profundos.” – John Polkinghorne, físico de partículas de Cambridge (in “Beyond Science”)

Seria aconselhável que Olavo de Carvalho estudasse matemática para que possa compreender que existem “coisas em si” que são impossíveis – pelo menos no nosso estágio de evolução científica, e porventura sempre – de traduzir em indícios materiais, embora possam ser expressas em folhas de papel. Dizer que a filosofia de Kant faz parte da “paralaxe cognitiva” (segundo teoria de OC), é incluir a física quântica, ou a matemática, na mesma categoria de incongruência cognitiva que OC atribui ao númeno kantiano.


(1) O “acaso” não pode estar na “causa” de alguma coisa – sendo o “acaso” a imponderabilidade e a imprevisibilidade inerente ao caos – porque se assim fosse, não existiria uma causa potencialmente cognoscível e passível de ser analisada pela ciência. A “coisa em si”, segundo Kant, não é acásica e/ou subjectiva, mas é racional. A “paralaxe cognitiva” de OC aplica-se – aqui sim – à teoria de Dawkins, que é contraditória nos seus princípios racionais e filosóficos: o “acaso” presente na origem do universo (segundo Dawkins) e o método científico racional contradizem-se intrinsecamente. O “caos acásico” não é passível de categorização sistemática e, por conseguinte, de análise científica, e nem sequer pode entrar no conceito kantiano de “coisa em si”, porque o caos não pode ser definido e pensado racionalmente. O Caos é, neste sentido, a antítese da Razão, e por isso, a teoria de Dawkins é contraditória com os princípios científicos que ele próprio diz defender. Naturalmente que este raciocínio escapa ao cidadão incauto que quer acreditar na nova religião de Dawkins.
(2) Em toda a sua obra, Kant fez um esforço considerável para distanciar o conceito de “númeno” do conceito de Deus ou/e de algo ou tudo o que deriva de Deus, ou que com Ele se relacione. Na “Dialéctica Transcendental”, Kant critica mesmo, sob o ponto de vista da lógica argumentativa, a prova físico-teológica do teísmo (que admite um Deus vivo com atributos determinados por uma teologia natural) e o deísmo – que admite apenas um ser originário ou uma causa suprema. É esta imparcialidade racionalista (passo a redundância) de Kant que incomoda não só os materialistas filosóficos como os espiritualistas dogmáticos, e que faz dele um espírito livre.

7 comentários »

  1. Vou divulgar o texto, Orlando. Espero que não se importe.

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    Comentar por Angustiada Consciência — Quarta-feira, 5 Março 2008 @ 9:50 pm | Responder

  2. Tudo bem.

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    Comentar por Orlando — Quinta-feira, 6 Março 2008 @ 10:48 am | Responder

  3. Gostei muito de sua análise e concordo que tanto para Kant quanto para Wittgenstein há limites impostos ao ser humano seja pela lógica da apercepção (K) ou pela forma lógica da linguagem (W). O conceito de “coisa em si” kantiano é muito próximo da noção de “místico” wittgensteiniana expressa no Tractatus, ambos acreditam que há o transcendental que, todavia, não é passível de ser apreendido pelo entendimento ou descrito pela linguagem. Não é passível de ser descrito materialmente, contudo se faz presente e é a condição do próprio mundo material, ou como diria Witt. “se mostra”, mas não pode ser dito.

    Contudo te pergunto se é possível dissociar Hursserl do cenário materialista sem fazer o mesmo com Heidegger, pois me parece que o conceito de “Eu puro” difere do conceito de “Dasein” apenas pelo fato de que o primeiro acredita não ser necessário recorrer a um ente mundano para atingir o transcendental, enquanto Heidegger pensa que o “ser-o-aí” não pode prescindir do ente mundano, entretanto, a discordância essencial entre ambos se limita a este “procedimento metodológico”, de resto, como disse Hursserl, “A fenomenologia somos Heidegger e eu”.

    Fico grato se puder esclarecer minha dúvida.

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    Comentar por Bozatski — Quinta-feira, 6 Março 2008 @ 3:11 pm | Responder

  4. @Boz:

    Vou fazer um post sobre isso aí, porque não posso resumir num comentário. Provavelmente publicarei amanhã.

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    Comentar por Orlando — Sexta-feira, 7 Março 2008 @ 8:13 am | Responder

  5. […] Epoché, existencialismo, fenomenologia, Heidegger, Husserl, Kant, Wittgenstein Em relação a este post, e a este comentário: Destaco Wittgenstein da maioria dos filósofos do século 20, não porque […]

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    Pingback por Comentando um comentário « perspectivas — Sexta-feira, 7 Março 2008 @ 6:15 pm | Responder

  6. Eu concordaria com o texto se não fosse essa parte:

    “A “coisa em si”, ou “númeno”, traduz a realidade conceptual apodíctica, isto é, os conceitos que não sendo passíveis de comprovação empírica, não deixam de existir porque podem ser pensados de forma racional.”

    A coisa-em-si não traduz a “realidade conceptual apolítica”, não tem nada a ver com isso. Trata-se de um limite da própria representação fenomênica, mas não do conhecimento. Tudo que é pensado de forma racional é derivado da experiência, por isso, de uma forma ou de outra, pode ser falseado.

    Conceito não passível de comprovação empírica é um contra-senso. Outra coisa: “pensar de forma racional” é só um pleonasmo! rs.. Tempo e espaço são intuições a priori do intelecto.

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    Comentar por Marcelo — Sábado, 13 Fevereiro 2010 @ 6:31 pm | Responder

  7. Temos, antes de mais de distinguir “coisa” de “coisa em si”. A “coisa” está ausente da Física quântica porque esta só conhece as trajectórias e/ou as suas medidas (princípio de Heisenberg).

    Segundo Kant (que é o que está em questão aqui) o fenómeno (a “coisa”) é objecto do conhecimento através da percepção e só através da percepção. Isto significa que o conhecimento não é o objecto do conhecimento sensível enquanto este é sensível (enquanto “coisa”).

    Os númeno de Kant são, por assim dizer, as causas primeiras e os axiomas, a “causa final” de Aristóteles. O conhecimento dessas causas primeiras é apodíctico (percepção). Vamos definir “apodíctico” para evitar mal-entendidos.

    A presença da “causa final” de Aristóteles ou das causas primeiras, no nosso pensamento, é apodíctico (não “ apodíctico” no sentido da filosofia clássica que significa “demonstração” através da experiência, mas no sentido de Kant que significa a constatação do a priori no nosso pensamento; se estamos a falar de Kant, temos que interpretar os símbolos segundo Kant). Para Kant, o apodíctico é a modalidade necessária dos juízos, e essa modalidade é necessária porque existe a priori no nosso pensamento em função das causas primeiras.

    Por outro lado, você não pode confundir “racionalidade” com “racionalização”. “Pensar de forma racional” é sinónimo de racionalidade, e não de racionalização; por exemplo, o delírio interpretativo é racionalização, e não racionalidade. Quando você pensa a partir das causas primeiras ― e/ou, no seguimento deste processo de pensamento, adopta a logicização da lógica (“logicização da lógica” também não é um pleonasmo; pode parecer, mas não é) ―, esse pensamento não tem necessariamente que ver com “comprovação empírica” no sentido da ciência.

    “Conceito não passível de comprovação empírica é um contra-senso.”

    Ademais, você tem que distinguir (pelo menos) três realidades de conhecimento que correspondem a outras tantas estruturas da realidade: a empírica (método positivista), a imanente (matemática, Física quântica) e a transcendente (apodíctica ou a priori). Aristóteles já dizia isto mesmo, por outras palavras, no século IV a. C.

    Quando eu digo que “a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é sempre igual a 180 graus”, trata-se de um conceito apodíctico no sentido kantiano, ou axiomático.

    Quando, através da linguagem formal da matemática, eu demonstro que a função ondulatória quântica se transforma em PEL (partículas elementares longevas) através da simples observação daquela por uma consciência (em princípio, uma consciência humana, mas não podemos ter a veleidade de excluir outros tipos de consciência, porque seria uma estupidez partirmos do princípio de que estamos sós no universo), trata-se de um conceito imanente, independentemente de este conceito imanente poder ser, mais tarde, demonstrado empiricamente. Quando Einstein desenvolveu a teoria da relatividade através da linguagem formal da matemática, desenvolveu conceitos que só mais tarde tiveram aplicação prática ou empírica.

    Quando eu constato as leis da termodinâmica (e não construo as leis; o Homem vai construindo as leis da natureza mas a partir de uma realidade existente que não é totalmente conhecida, da mesma forma que existem várias formas de se construir um puzzle que existe antes de o Homem o construir), trata-se de um conceito extraído da constatação da realidade empírica.

    Portanto, o seu conceito de “conceito”, está desactualizado.

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    Comentar por O. Braga — Sábado, 13 Fevereiro 2010 @ 8:05 pm | Responder


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