O Neoliberalismo tem muito pouco a ver com o liberalismo capitalista clássico, que sempre foi uma teoria económica com repercussões na política, e não uma ideologia política propriamente dita. O Neoliberalismo resulta de uma filosofia antropocêntrica, à semelhança do Marxismo, e o actual tipo de globalização está directamente relacionado com a expansão da ideologia política resultante da filosofia de Hayek.
As influências filosóficas de Hayek
Já aqui falei em Kant e em Heidegger, mas ainda não me referi a Hume e a Aristóteles; os quatro são os filósofos em que se sustentou Hayek para lançar as bases da sua filosofia.
Hayek foi buscar a Ética Nicomaqueica de Aristóteles no que se aplica aos hábitos humanos, através dos quais o Homem constrói – de forma instintiva – um padrão de comportamentos e de expectativas tácitas em relação aos seus semelhantes, solidificando-o com a razão, com a experiência (empirismo) e com o tempo. Estes padrões de comportamento – “tendências”, segundo Hayek, “hexei”, segundo Aristóteles – são inconscientes, isto é, não são racionalizados pela nossa mente cartesiana, mas adoptados por ela. Esta visão aristotélica foi mais tarde retomada por Kant com o seu conceito de “substância transcendental” ou “a priori”. De Aristóteles a Kant, Hayek defende o ponto de vista de que as melhores capacidades do Homem provêm da nossa mente não-cartesiana e que essas capacidades inconscientes estão subjacentes à mente consciente, sendo que todas as operações conscientes se devem a essas capacidades inconscientes que constituem o “a priori” de Hayek. A diferença entre Hayek, por um lado, e Aristóteles e Kant por outro, é que estes últimos atribuíram a “substância humana” ou o “a priori” a uma metafísica implícita, enquanto que Hayek incorpora na sua filosofia o cepticismo de Hume e o existencialismo de Heidegger para fugir à espiritualidade aristotélica e kantiana.
A coexistência – na raiz da filosofia de Hayek – do “hexei” aristotélico com o cepticismo de Hume, com a justificação racional do fundamento da fé encontrado em Kant, e com o relativismo moral desconstrutivista de Heidegger, constitui um elemento de constante tensão essencial na filosofia de Hayek que leva a sua incoerência ideológica à ininteligibilidade. Por exemplo, seria como a tensão essencial que existiria certamente numa filosofia que tentasse conciliar o marxismo mais ortodoxo com o capitalismo mais liberal.
A Hume, Hayek foi buscar o cepticismo em relação ao empirismo científico, e principalmente o cepticismo em relação à Verdade e à validade da moral, da ética e das tradições culturais humanas. Deste cepticismo hayekiano, mesclado com o materialismo desconstrucionista de Heidegger, resulta a dúvida sistemática hayekiana em relação aos valores da tradição humana, à ética e à moral, o que conduziu ao relativismo moral contemporâneo do neoliberalismo que nega qualquer possibilidade racional de escolha (livre-arbítrio) entre teorias opostas ou divergentes, ou nega a possibilidade de adopção de princípios morais de uma forma racional e/ou objectiva.
O relativismo moral é essencial para a sobrevivência do neoliberalismo e do tipo de globalização selvagem que temos, e por paradoxal que pareça, o relativismo moral é também condição imprescindível para a sobrevivência do marxismo cultural como projecto político. Por isso, podemos dizer com toda a lógica e propriedade que o que une o Bloco de Esquerda ao capitalismo global é o relativismo moral, e por isso, a Esquerda a que pertence o BE e o actual PS de José Sócrates alimenta e reforça o monstro político em que se transformou o neoliberalismo selvagem globalizado – como filosofia que deu origem a uma teoria económica e a uma ideologia política. Combater o neoliberalismo selvagem com o marxismo cultural, é exactamente como deitar gasolina para uma fogueira, porque se baseiam ambos nos mesmos pressupostos filosóficos, e as diferenças não são substanciais mas formais.
O combate ideológico ao neoliberalismo global selvagem que desvaloriza a vida humana e que se substituiu ao colonialismo no mundo terá que ser efectuado pela via dos Valores radicados em princípios do Respeito pela Vida e pela Dignidade Humana – sem excepções.
Hayek repudia a visão do marxismo-freudiano (ou marxismo cultural) que acredita – através da sua Teoria Crítica – que as normas ou regras são instrumentos de opressão de classe, atribuindo ele (Hayek) a essas normas ou regras um valor “científico” que determina a capacidade de adaptação do ser humano às contingências da vida, servindo assim – segundo Hayek – as regras e normas para libertar o Homem e não para o escravizar, ao contrário do que defendem os marxistas culturais. Contudo, tanto o cepticismo de Hume como o desconstrucionismo relativista moral de Heidegger estão presentes, tanto no Neoliberalismo de Hayek, como no Marxismo Cultural.
Se por um lado Hayek acredita nas virtudes do “a priori” kantiano, recusa a ideia de transcendentalidade da substância humana (espiritualidade) desse “a priori” – e nem poderia ser de outra maneira, porque assim não sendo, a sua filosofia não daria lugar a uma ideologia política, depois da supremacia cultural das filosofias materialistas e mecanicistas do século XIX e XX; hoje, qualquer teoria política tem que ser antropocêntrica para poder vingar à luz de uma ciência determinista que já perdeu o seu determinismo. Parece absurdo? É assim o mundo em que vivemos.
Para Hayek, a moral não resulta de uma transcendência humana intrínseca, mas da “selecção natural das tradições” (sic, “Road to Serfdom”). Contudo, o “tradicionalista” Hayek é muitas vezes forçado a encontrar muito boas razões para a sua adesão à moralidade tradicional e bafienta quando defende princípios como a “ordem de mercado”, o Estado de Direito tradicional e a necessidade das leis existentes, que considera imprescindíveis para a sua visão de sociedade – ou seja: na senda da afirmação dos seus princípios filosóficos, Hayek adopta uma agenda política de reformas radicais para “libertar o processo de crescimento espontâneo dos obstáculos que a loucura humana erigiu” (sic, Ib.); mas se esses obstáculos que “a loucura humana erigiu” pertencem à nossa herança cultural tradicional, ficamos sem saber onde é que Hayek quer colocar a alavanca reformista radical para acabar com a herança cultural tradicional; trata-se de um “loop” ideológico, de entre uma série de incoerências na teoria de Hayek que torna a sua filosofia ininteligível.
Devo dizer que a minha discordância de base – de essência – com Hayek é a sua visão materialista do ser humano desprovido de alma, e quando ele cria as bases do “utilitarismo evolucionário” que opõe tradicionalmente Kant a Bentham, de que falarei a seguir.
O “utilitarismo evolucionário” de Hayek
Hayek introduziu o conceito de “selecção de valores” (a moral como “selecção natural das tradições”).
Já me tenho referido a Bentham e ao seu “Utilitarismo”, que é uma filosofia que advoga o sacrifício das minorias – que pode incluir a necessidade da sua eliminação física – para que uma maioria viva materialmente bem. Por exemplo, o aborto legalizado é um exemplo do utilitarismo moderno, mas não só: a insensibilidade crescente (e que é subliminarmente incentivada pelo neoliberalismo global) em relação a problemas como o do Darfur ou do Tibete, revelam uma tendência preocupante para uma crescente presença do Utilitarismo de Bentham nas sociedades contemporâneas.
Hayek pretendeu resolver o problema da histórica oposição de Kant a Bentham com a introdução do “utilitarismo evolucionário”. Para isso, Hayek começa por criticar os neo-darwinistas que defendem a ideia de que a Evolução “selecciona os indivíduos”.
Aqui, Hayek vai buscar a definição de “Ética” de Bertrand Russell (outro materialista) segundo o qual a Ética é a simples soma aritmética das manifestações dos “desejos individuais”; se uma pessoa deseja alguma coisa e essa coisa passa a ser aceite pela maioria, passa a fazer parte da Ética. Seguindo Russell, se uma pessoa deseja matar os judeus e esse desejo é compartilhado pela maioria, o holocausto passa a fazer parte de uma ética tão válida como qualquer outra.
Assim, Hayek considera que os neo-darwinistas estão errados, porque a lógica da evolução implica uma fundamental desproporção entre os indivíduos e os respectivos grupos: os indivíduos não podem viver sem o grupo, enquanto o grupo só necessita do indivíduo se este for indispensável à sobrevivência do grupo. Se o indivíduo não for indispensável à sobrevivência do grupo, ele torna-se dispensável e provavelmente o próprio grupo elimina-o fisicamente. Radica aqui a ideia de que o mendigo não é indispensável para a sobrevivência do grupo, e portanto, pode perfeitamente ser fisicamente eliminado; naturalmente que Hayek não defende esta ideia da forma como a expus, mas ela está implícita no seu conceito de “utilitarismo evolucionário”.
Portanto, o “utilitarismo evolucionário” de Hayek é a adopção do Utilitarismo de Bentham e de Stuart Mill, ao mesmo tempo que Hayek justifica o conceito kantiano da necessidade de “obediência instintiva” em relação à ética e à moral por parte dos humanos, não devido à substancialidade transcendental do “a priori” de Kant, mas devido à necessidade da optimização do grupo no sentido da selecção das tradições que legará a moral às próximas gerações, isto é, a necessidade da obediência à ética (defendida por Kant) deve-se ao facto (segundo Hayek) de a maior parte dos indivíduos não compreender o “modus operandi” das normas, que para a maioria constituem os “valores” que funcionam numa cadeia complexa de causas e efeitos que interligam todos os indivíduos em sociedade. A necessidade de obedecer às normas (segundo Kant) existe de facto (segundo Hayek), mas nada tem de transcendental e está exclusivamente ligada à sobrevivência do grupo. No fundo, Hayek reduz a ética à noção de “desejo” de Russell, e justifica assim todo o tipo de barbaridades em nome da sobrevivência do grupo. Mais: acontece que o “grupo” pode ser uma parte restrita da sociedade em geral; um grupo pode ser um plêiade ou elite social que determina os valores que devem ser obedecidos, uma vez que – segundo Hayek – não existe a possibilidade de adopção de princípios morais de uma forma racional e/ou objectiva, mas segundo uma lógica de submissão do indivíduo aos interesses do grupo.
A filosofia de Hayek selecciona o grupo e não o indivíduo. Quando os neoliberais da blogosfera exaltam Hayek como sendo o paladino da afirmação do indivíduo na sociedade, não sabem absolutamente nada do que estão a dizer; trata-se ignorância pura mascarada pela “doutorice” de detentores de alvarás de inteligência sancionada pela nomenclatura política “in force”.
O “utilitarismo evolucionário” de Hayek é a transposição literal da lógica da selecção das espécies para o funcionamento da sociedade, como se o ser humano não passasse de um mero conjunto de genes. Segundo a lógica de Hayek levada ao limite, a) os membros mais fracos da sociedade são perfeitamente dispensáveis e passíveis de eliminação física; b) se a Moral não é algo com origem transcendental, passa ser um simples produto da História e portanto deixamos de ter um verdadeiro critério para os valores, e c) os julgamentos morais deixarão de poder ser realizados, seja em relação aos actos humanos individuais, seja em relação à evolução de uma sociedade em determinado sentido.
Hayek é, nada mais, nada menos, do que um historicista – como o é um vulgar marxista. Nem sequer estudou economia na sua juventude (estudou Leis). Toda a teoria económica de Hayek é construída sobre os pressupostos da sua filosofia, e portanto considero um absurdo que se defenda a sua teoria económica sem se analisar primeiro a estrutura de base da sua filosofia. Eu posso querer a paz, e tu também; mas só analisando os pressupostos ideológicos subjacentes aos nossos “desejos de paz”, podemos saber se existe uma comunhão de ideias sobre a forma como essa paz deve ser alcançada. Por exemplo, existe gente que quer a paz através da guerra.
Eu até posso concordar com algumas teorias económicas de Hayek, que derivam directamente do liberalismo clássico; concordo mesmo com muitas ideias políticas publicadas por Hayek, como por exemplo, a ideia de que o “construtivismo” e a “engenharia social” da ciência política de origem marxista são a “procura do impossível”, isto é, são absurdas e irracionais – não porque sejam de Hayek, mas porque são obviamente lógicas e historicamente comprováveis; mas isso não significa que automaticamente considere a sua teoria como sendo positiva, porque a sua filosofia de base é tão negativa como a do estalinismo derrotado pelo progresso humano das ideias.
Mais importante que a forma de uma teoria, é a substância dessa teoria; por isso, a solidariedade social terá que ser mais do que algo resultante de um capricho egoísta do sistema neoliberal, e a justiça social terá que ser uma virtude inerente ao ser humano e não fazendo parte da impessoalidade do Estado – como é defendido pelo marxismo cultural –, fazendo jus a Aristóteles que considerava a Justiça a mais nobres das virtudes.
A visão do mundo segundo Hayek tornou-o ainda mais pobre do que era – tanto do ponto de vista espiritual, como do ponto de vista material.
O progresso material do terceiro-mundo seria sempre inexorável, com este neoliberalismo ou com uma globalização mais consentânea com os valores da dignidade humana, e portanto, o argumento de que o neoliberalismo é causa de progresso nos países pobres é a falácia de quem diz que as coisas acontecem assim porque não podem acontecer de outra maneira.
A miséria espiritual é uma evidência, a nível global. O relativismo moral transporta a humanidade a uma situação de “ética rasa” desprovida de uma hierarquia de valores universal, em que vale tudo e tudo é justificável, com consequências imprevisíveis para o futuro próximo.
Orlando, o que nos separa é apenas a fé.
A minha, apenas reside na humanidade e no melhor que ela pode ser e representar…
Relativamente à análise não poderia deixar de concordar na sua globalidade, embora não aceite que o marxismo e neoliberalismo sejam ideologias. Quanto muito, sobretudo o marxismo, são um aglomerado de ideologias/teorias e obviamente “opostos que se atraem mutuamente”, concordo em absoluto. Até iria um pouco mais longe e diria mesmo que são duas faces da mesma moeda.
Agora, o que nos revelará o futuro é no mínimo preocupante, porque no fundo “somos aquilo que a cultura (acculturation) faz de nós”…
Comentar por matrix — Segunda-feira, 6 Outubro 2008 @ 7:28 pm |
São ideologias (vou escrever sobre isso). A ideologia também pode ser uma espécie de fé, um desejo mundano. A Wikipédia define “ideologia”:
Comentar por O. Braga — Segunda-feira, 6 Outubro 2008 @ 9:35 pm |