perspectivas

Segunda-feira, 8 Março 2010

Direita e esquerda gnósticas

Este fim-de-semana vinha no carro e ouvi na rádio (salvo erro, na Antena 1) a deputada do CDS/PP Teresa Caeiro dizer que “hoje a distinção de esquerda e de direita já não faz sentido”. Hoje vi este postal com o título: “Pela Direita dos Valores e a Esquerda do Trabalho!” (via). Decididamente, tenho que falar sobre o assunto. Vou primeiro ao postal.

Religião política

Desde logo, o autor do texto faz uma distinção entre a esquerda de antes de 1789 e a esquerda de depois dessa data. Precisamos sempre de pontos de referência para fazer uma análise. A revolução francesa é, no texto, o corte histórico, o que faz sentido em termos de referenciação analítica. Mas a verdade é que a esquerda é a mesma, ou melhor, tem a mesma essência (1) embora não a mesma substância (2), antes de 1789 e depois desta data. Não faz sentido falarmos de várias esquerdas, umas antes e outras depois de 1789, mas sim falarmos em religiões políticas diferentes com origem no movimento gnóstico europeu.

A diferença essencial entre a esquerda e a direita tradicional ou conservadora, é que a primeira se escora ou se baseia em uma determinada religião política, e a segunda fundamenta a sua acção na ordem tradicional da sociedade conforme legada da filosofia grega e aplicada pelos romanos através do conceito de “tradição”, em conjunção com a religião cristã.

Sabemos que a dicotomia esquerda / direita foi estabelecida pelo movimento gnóstico (a esquerda) em função da posição relativa dos deputados com assento na Assembleia Nacional francesa. Portanto, a terminologia de “esquerda” e “direita” tem apenas um valor quando e se relativo aos símbolos. Os símbolos por si só não valem nada se não soubermos ou procurarmos saber aquilo que eles significam e qual a sua origem ou causa. E são esses símbolos que devemos analisar no seu significado intrínseco, sob pena de estarmos a falar do assunto de uma forma desconexa e que tende a baralhar quem nos ouve. “Fazer as coisas direitas” sempre fez parte do senso-comum, e quem “não fazia as coisas direitas” era do “reviralho”, era “torto” ou de “esquerda”. O discurso da não-diferenciação entre a significação simbólica esquerda/direita é um discurso de esquerda, porque parte das mesmas premissas ideológicas (da mesma essência) que levou à tradução dessa dicotomia em termos políticos.

A grande “dor-de-cabeça” dos políticos em geral são as pessoas que se familiarizam com a filosofia, porque o aprendiz de filósofo, como é o meu caso, dá uma importância primordial às definições. Quando um filósofo se expressa sobre qualquer assunto, tem a preocupação primeira de definir noções e de estabelecer os limites de conteúdo dos conceitos. Ora esta preocupação com as definições deveria ser extensível a toda a gente que escreve sobre estas matérias; se os políticos se eximem a esta obrigação analítica, estão a enganar o povo. Da minha parte, nunca irei desistir de sublinhar o óbvio; “cantarei até que a voz me doa…”, como cantou Amália Rodrigues.

Todas as religiões políticas (3) são de esquerda. Todas. E são de esquerda porque todas elas evoluíram a partir da transformação contínua e diversificação ideológica do movimento gnóstico europeu, pelo menos desde a cristianização do império romano.

E pergunta-se: e o liberalismo económico de Adam Smith ? O liberalismo económico de Smith, quando surgiu, não era uma ideologia mas um sistema económico aplicável em função de uma realidade objectiva que decorria da revolução industrial. Smith nunca afirmou que o capitalismo era o melhor dos mundos ou colocou em causa os princípios da ordem da sociedade; apenas se limitou a estabelecer uma teoria económica consentânea com a realidade objectiva da economia que acabou por ter repercussões na política. A ordem da sociedade defendida por Smith não era diferente do princípio de ordem tradicional. O liberalismo económico só se transformou numa religião política, com as suas derivações ideológicas posteriores, quando com a prevalência do Positivismo, a lógica das religiões políticas se impôs e se instalou definitivamente na forma de fazer política no decurso do século XIX.

A mais-valia puramente especulativa foi criticada por S. Tomás de Aquino no século XIII, quando essa mais-valia se afastava daquilo a que o santo chamou de “justo preço”. As preocupações com a teoria económica do justo preço em função do trabalho e dos custos de produção, foi basicamente introduzida na Europa por um clérigo católico no século XIII, e não por Karl Marx no século XIX. Isto não significa que S. Tomás de Aquino não tenha defendido abertamente uma economia de mercado; pelo contrário, defendeu a economia de mercado tendo como base uma ética cristã.

Segundo São Tomás e a escolástica em geral, a noção de “propriedade” não era axiomática, ou seja, a propriedade não se consistia em si mesma como um princípio primeiro, mas antes era uma consequência de um princípio que lhe era anterior. E esse princípio anterior era o da própria ordem da sociedade que determinava “aquilo que cabe” a cada um dentro dessa ordem. E “aquilo que cabe” a cada um poderia ser retirado a alguém se esse alguém não cumprisse as suas obrigações em função da consequência da posse da propriedade segundo a ordem da sociedade. A propriedade era concedida em função da ordem da sociedade, e não era um princípio nem um direito inalienável.

O grande problema das análise políticas da esquerda e da direita modernas, como é o caso de Alain Soral no texto citado, é que partem do princípio de que a História começou em 1789. O que está para trás de 1789 é referenciado como “antigo regime” e não merece uma atenção particular. Isto significa que a direita dá tiros nos pés, e que essa direita acaba por absorver a lógica dos movimentos gnósticos na sua argumentação política.

“É de esquerda o que favorece o Trabalho. É de direita o que favorece o Capital”

Esta definição de esquerda e de direita decorre das religiões políticas e faz com que quem a utilize se enquadre perfeitamente no mundo das religiões políticas. Soral faz parte do problema e não da solução. Karl Marx nunca foi a favor do trabalho, mas a favor dos trabalhadores, o que é coisa muito diferente. Soral deveria ler mais sobre filosofia política ou deixar de fazer da mentira o meio da sua acção política. A ideia que Karl Marx tinha do trabalho derivou directamente do conceito de trabalho que vigorava na pólis grega ― ou seja, um conceito negativo. Para Marx, o trabalho era mau em si mesmo, e a sociedade pós-revolução não só abolia o trabalho como a política.

Por outro lado, já vimos através da herança das ideias de S. Tomás da Aquino que se traduz na Doutrina Social da Igreja, que a direita tradicional e conservadora não favorece discricionária e necessariamente o capital. Por último, e nisto estou de acordo com Soral, a chamada “direita liberal” (4) é um apêndice da esquerda na medida em que alimenta a lógica do maior equívoco de todos os tempos da História da Filosofia: a dialéctica de Hegel.

Enfim: o nazismo, como religião política, surgiu da esquerda e da direita gnósticas. O nacionalismo sem a verdadeira tradição que inclui o cristianismo, é tanto uma religião política gnóstica como é o marxismo. Aconselho os leitores habituais de Alain Soral a retirarem os antolhos e a lerem apenas e só um pequeno livro de Eric Voegelin com pouco mais de 100 páginas, com o título “As religiões políticas”.


(1) essência : ser em potência (Aristóteles)
(2) substância : ser em acto (Aristóteles)
(3) a religião política consiste na imanentização da escatologia cristã, por via da criação de uma sistema de crenças intra-mundano que defende a crença da possibilidade da construção de um paraíso na terra através do conhecimento científico e consequente mudança da ordem do ser humano e da sociedade. A herança gnóstica das religiões políticas modernas consiste nessa “imanentização do éschatos” (Eric Voegelin). O positivismo, o marxismo, o nazismo, e sucedâneos, são religiões políticas.
(4) direita gnóstica, ou liberal, ou libertária, existe não no sentido da teoria económica de Adam Smith que não passou disso mesmo, mas no sentido da antítese dialéctica marxista — a antítese hegeliana necessária e sem a qual o movimento gnóstico moderno deixa de fazer sentido. A direita gnóstica é a direita libertária ou neoliberal que alimenta a dialéctica marxista.

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